Coluna

Renan Quinalha

Livros e Livres

Uma vida, tantas lutas

Peça e livro buscam fazer justiça à memória de Herbert Daniel, guerrilheiro gay que participou, na linha de frente, de ações de combate à ditadura

01mar2024

Diversas lutas atravessam cotidianamente nossas vidas. Mas é raro que uma vida atravesse, com profundidade, tantas lutas. Este é precisamente o caso de Herbert Eustáquio de Carvalho, também chamado de “Bete” por sua família ou, ainda, de “Daniel”, apelido utilizado por ele durante a luta armada contra a ditadura.

Daí o título Codinome Daniel, lançado pela editora Ercolano no mês em que se completam sessenta anos do golpe que, em 1964, instaurou um regime autoritário que se arrastou por longos 21 anos e ainda hoje segue ressoando em nosso país.

O texto dramatúrgico do escritor e diretor Zé Henrique de Paula busca homenagear e fazer justiça à memória de um sujeito que tanta importância teve para a história brasileira, mas que é hoje tão pouco (re)conhecido ou lembrado. Na apresentação do livro, o autor escreve: “a pergunta que eu mais ouvi, quando mencionava que estava escrevendo e, depois, dirigindo uma peça sobre Herbert Daniel, era: ‘Quem?’”.

Biografia

Mineiro, estudante de medicina na UFMG, companheiro de militância de Dilma Rousseff e Carlos Lamarca, Daniel se engajou em grupos guerrilheiros no final da década de 60, quando teve de entrar para a clandestinidade. Ele chegou a participar, na linha de frente, de assaltos a bancos e do sequestro de diplomatas estrangeiros que garantiram a soltura de mais de uma centena de presos políticos que corriam risco de morte.

Foi nesse contexto de militância clandestina que Daniel descobriu e assumiu sua homossexualidade. De um lado, ele se encontrava acossado pela violência de uma ditadura LGBTfóbica; de outro, também sofria com a falta de aceitação por parte dos companheiros de guerrilha, que reproduziam uma moral conservadora também presente nas esquerdas.

Figura das mais procuradas pelos órgãos de repressão, Daniel teve de passar quase três meses completamente isolado em um aparelho na cidade de Niterói, em 1971. Ali, não podia fazer barulho, abrir janelas ou acender uma luz. Qualquer sinal poderia levar a sua descoberta e prisão que, naquele momento da ditadura, significaria a morte. Nesse mesmo confinamento, paradoxalmente, conheceu Cláudio Mesquita, que se tornaria seu companheiro de toda a vida.

Companheiro de militância de Dilma e Lamarca, Daniel se engajou na guerrilha no final da década de 60

Os riscos de estar no país acabaram forçando-os ao exílio, primeiro em Portugal, depois na França. Um dos últimos exilados a voltar ao Brasil, Daniel teve um papel importante na reconstrução e renovação das esquerdas, com sua adesão cada vez mais marcante às causas homossexual, ambiental e feminista. Ele chegou a se lançar candidato deputado estadual depois de uma experiência como assessor parlamentar, envolvido com o Partido dos Trabalhadores (PT) e depois com o Partido Verde (PV).

Outros fatores são determinantes para compreender a vida de exílios e de lutas de Herbert Daniel: a descoberta do diagnóstico de HIV positivo e a militância decisiva para humanizar políticas de tratamento e de prevenção da doença que levou a sua morte, em 29 de março de 1992.

Codinome Daniel é fruto do espetáculo musical homônimo, montado pelo Núcleo Experimental de Teatro e atualmente em cartaz em São Paulo. Zé Henrique de Paula é também diretor da peça e tem se notabilizado, nas cenas paulistana e nacional, como um dos mais profícuos nomes do teatro musical.

Seu texto é inspirado na biografia referencial escrita pelo historiador e brasilianista James N. Green, Revolucionário e gay: a vida extraordinária de Herbert Daniel, lançada originalmente pela editora Civilização Brasileira em 2018 e que ganhará uma reedição neste ano.

Ligações íntimas

Por se tratar de dramaturgia e não de um registro biográfico tradicional, o livro de Zé Henrique de Paula adota uma instigante estratégia ao organizar o eixo narrativo da vida de Daniel a partir dos personagens que entram e saem de cena. Tal escolha faz com que Daniel se torne, ao mesmo tempo, protagonista e objeto — muitas vezes secundário — da narrativa. Em outros termos, a escolha revela que só é possível conhecer a vida de Daniel a partir das batalhas que lutou e das pessoas com quem conviveu.

O texto dramatúrgico se desenrola a partir dessas ligações íntimas de Daniel: com a mãe, a adorável Dona Geny; com os irmãos e o pai; com companheiros/as de guerrilha, especialmente Carlos Lamarca, Dilma Rousseff e Iara Iavelberg; com seu amor, Cláudio Mesquita.

Na obra de Zé Henrique de Paula, merece destaque a presença de James N. Green, que não conviveu com seu biografado, mas assume um lugar especial de narrador sempre em cena, trazendo mais contexto para o leitor. Com isso, o texto passa a alcançar quem não possui todas as referências, especialmente as novas gerações.

A ação, com os encontros e desencontros entre as personagens, curiosamente acontece, do início ao fim, no mencionado aparelho de Niterói. Foi nesse território, em uma situação–limite de isolamento, que Daniel conseguiu rememorar vivências, afetos, fantasmas, decisões e dilemas, como que em um balanço da própria existência, feito por ele mesmo e, sobretudo, por aqueles com quem conviveu intensamente, compondo uma vida que vai sendo tecida a várias mãos.

Codinome Daniel é parte de um conjunto de trabalhos feitos pelo autor em parceria com Fernanda Maia, diretora musical dos espetáculos. Dois espetáculos anteriores, Lembro todo dia de você e Brenda Lee e o palácio das princesas, também sairão publicados pela Ercolano, formando “uma trilogia pela vida” nas palavras de Zé Henrique de Paula. As três peças tratam de questões LGBTQIA+ e de HIV/aids, ajudando a refletir, nos livros e nos palcos, de modo sensível e sem preconceitos, sobre temas caros à história de Herbert Daniel e ao nosso país.

A editoria Livros e Livres, focada em títulos com temática LGBTQIA+, tem o apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos.

Editoria com apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos

Desde 2023, o Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos apoia a cobertura especial Livros e Livres, dedicada a títulos com temática LGBTQIA+

Quem escreveu esse texto

Renan Quinalha

É professor de direito da Unifesp e autor de Movimento LGBTI+: Uma breve história do século 19 aos nossos dias (Autêntica).