Renan Quinalha
Livros e Livres
No escurinho do cinemão
Em 'Cinema Orly', autor-personagem escreve diário detalhado de aventuras em ‘antro adorável de sexo livre entre homens’
01abr2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #80Cinemas sempre foram vistos como espaços voltados para a exibição e a apreciação de filmes, constituindo-se como territórios quase sagrados em que imagens e sons se conjugam para tocar os espectadores. Diversos têm sido os tipos de cinema na história: comerciais, “de arte”, os multiplex em shopping centers de hoje, os poucos ainda abertos às ruas. Qualquer que seja o formato, foi nesse espaço que muitos encontros românticos de jovens casais se iniciaram.
Mais misterioso e menos conhecido do grande público é o cinemão, assim apelidado no aumentativo mesmo. São aqueles prédios amplos e antigos de rua, geralmente no centro das metrópoles que, esvaziados de gente e de suas funções originais, acabaram adquirindo novos usos: tornaram-se locais de pegação e sexo entre homens.
Indo mais longe, os cinemas podem ser vistos como um ponto privilegiado para observar o processo de guetificação das populações LGBTQIA+, acusadas de vadiagem e retiradas de espaços públicos para serem confinadas, pelas autoridades, em zonas abandonadas nas regiões centrais, especialmente bares, praças e parques, banheirões e os famigerados cinemões.
O Rio de Janeiro não fugiu a essa tendência. Como desconfia o escritor Luís Capucho, o Cinema Orly só “era permitido pelas autoridades para tirar a bicharada da rua, do Aterro, da Via Ápia”. E assim recolhiam-se com frequência as bichas para dentro de onde não deveriam ter saído — ainda mais em plena luz do dia.
Lançado originalmente em 1999 e agora em caprichada edição da Carambaia, Cinema Orly pode ser lido como um manual de uso de um desses clássicos cinemões cariocas da Cinelândia. Nele se pode ler uma explicação bastante explícita e didática sobre os códigos, condutas e posturas apreendidos pelas experiências rotineiras do autor nesse ambiente. Ou, ainda, pode-se ler como um diário em que o narrador — e personagem — relata suas aventuras nesse “antro adorável de sexo livre entre homens”.
A promiscuidade e o anonimato emergem como duas faces da mesma moeda na sociabilidade gay
Apesar de dizer que o Orly é o seu lugar no mundo, nada é romantizado no relato. Descrições sinestésicas nos relembram, a todo momento, o cheiro e o clima pesados do lugar, povoado por baratas e definido como “penumbra que fedia a pau sujo, insalubre, grossa, abafada”, sem falar no sugestivo “bafo de caralhos”.
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Renan Quinalha
Outros nomes usados para designar esse lugar são submundo, fauna e gueto. Aparentemente críticos, em verdade traduzem elogios bem sinceros do autor-frequentador, que parece se sentir mais à vontade entre as paredes sujas do Orly do que em sua própria casa no subúrbio do Rio.
A cada página, somos conduzidos por um passeio dentro do cinema. Vamos conhecendo suas diferentes salas, os filmes exibidos em suas telas com atores e atrizes do mundo pornô, a clientela que vagueia ali sem rumo, esbarramos nos homens que ficam de pé pelos corredores trocando olhares com aqueles que estão sentados e esperando uma aproximação, transitamos por entre poltronas em que os frequentadores -— inclusive o narrador — praticam sexo oral e anal com destreza, em diferentes posições e em rodízios intermináveis de parceiros.
Todos esses encontros e movimentos nos fazem perceber, e quase sentir na própria pele, como “o chão entre as poltronas” vai se tornando um “verdadeiro cemitério de espermatozoides”, talvez a mais acabada e pouco poética descrição do lugar. A promiscuidade e o anonimato emergem como duas faces da mesma moeda na sociabilidade gay. Os homens vão emergindo na narrativa não como personagens com história, vida e nome, mas como conjuntos de pênis, coxas, saco e músculos. Depois do gozo ou até mesmo antes dele, dispersam-se e se camuflam como répteis naquele ambiente.
Banalização
A repetição dos atos sexuais descritos em suas minúcias são um forte da escrita envolvente de Capucho, que consegue botar o desejo na forma de palavras como poucos. Contudo, essa mesma reiteração acaba sendo cansativa na leitura, com expressões e sensações que se repetem até a exaustão e acabam perdendo algo de sua potência na banalização.
No posfácio, Bruno Cosentino e Eliane Robert Moraes, coordenadora da coleção Sete Chaves, da qual o livro faz parte, apresentam outra visão. Em relação à prosa do autor, afirmam a intencionalidade de “ativar o motor da repetição na sua potência máxima, tendo em vista a produção continuada da insaciedade” como uma marca da autoficção de Capucho.
Essa impossibilidade de cultivar relações públicas, duradouras e reconhecidas pelo Estado com as bênçãos das igrejas condenou esses homens, tal qual o narrador, à liberdade sexual sem limites. Isso é bom. Mas, como efeito colateral, veio também a inevitável objetificação do outro, a redução de si ao carnal e uma enorme dificuldade de desenvolver um relacionamento amoroso.
Em alguns dos poucos intervalos da sua pegação frenética, o narrador chega a confessar que gostaria de ter uma relação estável e afetuosa. Não que quisesse uma família tradicional, não é para tanto, mas parece que se ressente de ter se tornado “uma imagem, sem alma”. Os relatos de seus parcos namoros são passageiros e pouco animadores se comparados com a vivacidade do sexo casual que pratica religiosa e ritualmente no Orly.
Em alguns aspectos, a narrativa soa datada, afinal, hoje os homens parecem preferir os aplicativos de pegação, a não binariedade parece ter vindo para ficar, as masculinidades se pluralizam nas suas formas e os cinemões ficam cada vez mais esvaziados de público. Seja como for o futuro, no entanto, o autor tem êxito ao mostrar não a violência, mas o quanto de vida e prazer há no submundo em que os homossexuais foram jogados no século 20.
Matéria publicada na edição impressa #80 em abril de 2024.
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