Coluna

Renan Quinalha

Livros e Livres

O último triângulo rosa

Livro reconta a intrigante história de Rudolf Brazda, gay sobrevivente de campo de concentração nazista que morreu em 2011, aos 98 anos

01fev2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #78

“A cada um o que merece” era a frase inscrita na entrada do campo de concentração e extermínio de Buchenwald. Ao ingressar ali, em agosto de 1942, Rudolf Brazda mereceu tão somente uma tira de pano com o número 7.952 e um triângulo invertido, ambos costurados por ele mesmo na camisa e na calça do próprio uniforme.


Em Triângulo rosa, Jean-Luc Schwab conta os principais acontecimentos da vida de Rudolf Brazda, considerado o último sobrevivente dos homossexuais deportados aos campos de concentração e extermínio nazista

O número era a redução de sua existência a apenas mais um dentre os 280 mil prisioneiros, estimativa de pessoas que passaram — ou morreram — no campo. Ele foi o quinto a receber a numeração. Antes, dois poloneses, transferidos para outros campos, e dois alemães, mortos ali mesmo, tinham usado a tira de número 7.952.

No entanto, apesar da mesma numeração, os triângulos eram distintos. Diferentemente dos antecessores, que receberam triângulos vermelhos (“preso político”), verdes (“criminoso profissional”) e pretos (“antissocial, resistente ao trabalho”), Brazda mereceu um triângulo rosa, atribuído para escancarar sua homossexualidade.

Como ele, considerado o último sobrevivente dos homossexuais deportados (Brazda morreu em 2011), entre 5 mil e 15 mil pessoas foram enviadas aos campos de concentração e extermínio pela orientação sexual tida como “desviante” e uma ameaça à pureza ariana, segundo estudos recentes.

A intrigante história de Brazda, que viveu entre três países (Alemanha, a então Tchecoslováquia e França), mas passou parte do tempo como apátrida pelas reconfigurações das fronteiras na Segunda Guerra, é contada em detalhes na nova edição de Triângulo rosa: um homossexual no campo de concentração nazista.

Escrita por Jean-Luc Schwab a partir de conversas com Brazda e consulta a um vasto repertório de fontes, a obra traça, cronologicamente, os principais acontecimentos de sua vida em cruzamento com fatos históricos mais amplos da Europa. Os dois se conheceram em 2009 e estabeleceram uma relação de confiança e proximidade por três anos. Brazda morreu aos 98 anos, em 2011. Nessa nova edição há um epílogo de Schwab registrando as diversas homenagens recebidas pelo biografado, bem como um caderno de imagens de pessoas e documentos desses anos.

Um grande mérito do livro está em equilibrar o relato entre a força de vida de Brazda, que viveu sua homossexualidade de modo deliberado e com um senso marcante de liberdade, com as duras violências que sofreu no contexto político de ascensão do nazismo.

O parágrafo 175

Vale destacar, contudo, que não foi o nazismo que deu início à perseguição às sexualidades dissidentes na Alemanha. Em 18 de janeiro de 1871, a Prússia reuniu os estados alemães em uma federação, proclamando o Império Alemão e dando origem ao Segundo Reich. Esse novo Estado unificado foi dotado de um código penal que, no famigerado parágrafo 175 criminalizava a “luxúria contra o que é natural, realizada entre pessoas do sexo masculino ou entre o homem e o animal”, estabelecendo pena de prisão e perda dos direitos civis.

Várias foram as tentativas de revogar esse dispositivo legal, sobretudo durante a República de Weimar, período de profusão de publicações literárias, jornalísticas e científicas defendendo, no debate público e acadêmico, a naturalidade das relações e identidades homoeróticas. Os esforços de parte da intelectualidade alemã quase lograram a revogação do parágrafo 175, e esse ativismo fez com que o dispositivo fosse aplicado com menos rigor.

O clima de conservadorismo crescente, no entanto, jogou por terra essas iniciativas. E, ao contrário, houve um endurecimento da legislação. Já em 1935, os nazistas implantaram uma reforma alterando a expressão “atos de luxúria contra a natureza” para simplesmente “atos de luxúria”.

Por um lado, ampliou-se o tipo penal para abranger contatos sexuais que não o coito (cuja consumação era mais difícil de provar nos tribunais); por outro, atribuiu-se aos juízes maior liberdade de interpretação sobre o que contrariasse “o espírito dessa lei e os bons costumes”, sem mencionar a criação de agravantes que ampliaram as penas.

Em diversas partes, inclusive no Brasil, grupos neonazistas ressurgem com discursos LGBTfóbicos

A partir de então, houve um aumento na persecução penal e na condenação de pessoas acusadas de práticas homossexuais. O próprio Brazda foi preso outras duas vezes, antes de Buchenwald, com base no parágrafo 175. É curioso notar o abuso constante das autoridades (investigadores, promotores, advogados-gerais, juízes) contra indivíduos pelo simples fato de serem homossexuais.

Brazda e seus colegas são investigados de modo arbitrário, com mais convicções sobre sua sexualidade do que provas, sob constantes ameaças em um festival de prisões preventivas já no contexto de nazificação do Estado alemão. Forçados a confessar práticas sexuais, em um uso do direito como vetor de violências, acabam todos condenados a prisões e, alguns, enviados a campos de concentração.

Diferentemente de grupos étnicos e raciais, que conseguiram o reconhecimento de vítimas do Holocausto logo após a Segunda Guerra, a comunidade LGBTQIA+ só recentemente tem sido contemplada por políticas de reparação como pedidos oficiais de desculpas e memoriais.

O caminho ainda é longo. Por décadas após a derrocada do nazismo, o parágrafo 175 seguiu em vigor na Alemanha. Hoje, 69 países ainda criminalizam a relação entre pessoas do mesmo sexo. Em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil, grupos neonazistas ressurgem com discursos abertamente LGBTfóbicos. Instado por Schwab a deixar um recado às novas gerações que não vivenciaram o passado da guerra e do nazismo, Brazda, em uma passagem final do livro, registra uma advertência ainda atual: “Deve-se continuar alerta, lutar e avançar”.

A editoria Livros e Livres, focada em títulos com temática LGBTQIA+, tem o apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos.

Quem escreveu esse texto

Renan Quinalha

É professor de direito da Unifesp e autor de Movimento LGBTI+: Uma breve história do século 19 aos nossos dias (Autêntica).

Matéria publicada na edição impressa #78 em dezembro de 2023.