Livros e Livres,

Antídoto para dias ruins

Natalia Borges Polesso traça um retrato divertido de crescer nos anos 90 e recorre à literatura como espaço de conciliação entre passado e presente

01jan2024 | Edição #77

Revisitar o passado como um exercício de autoconhecimento não apenas em busca de características da adulta reveladas desde a infância, como também para observar as relações familiares e toda uma época sob outra perspectiva. A isso se propõe Foi um péssimo dia, uma autoficção voltada ao público juvenil capaz de atrair também leitores adultos interessados em pensar a literatura como possibilidade de ressignificar a própria trajetória.


Foi um péssimo dia, de Natalia Borges Polesso

O olhar de Natalia, a narradora e protagonista, não é nostálgico. Boa parte do bom humor no romance está nas reflexões de como é surpreendente que gerações de crianças brasileiras tenham sobrevivido a hábitos perigosos então considerados banais — como chupar a temida bala Soft e ser transportada na caçamba de uma caminhonete quando o uso cinto de segurança não era obrigatório e as cadeirinhas eram inimagináveis.

O livro é dividido em duas partes, dedicadas respectivamente à mãe e ao pai de Natalia. A primeira é centrada na infância, a segunda, na adolescência, e as duas são organizadas a partir de lembranças de dias ruins que marcaram esses períodos. Por ser contemplados com o distanciamento da maturidade, entretanto, os eventos ganham outras nuances, especialmente na maneira como a narradora observa os adultos.

A narrativa gira em torno dos desafios da vida de menina: fazer amizade na escola, entender o que é ser uma boa irmã, tirar boas notas, lidar com as transformações do corpo e os próprios sentimentos. A linguagem da autora mistura um vocabulário de criança curiosa, a ironia de uma jovem que não vê muito sentido em várias convenções sociais e equilibra os exageros da garota e o ponto de vista da narradora adulta que sobreviveu para contar.

Natalia investiga nas próprias lembranças quais traços de sua personalidade e quanto a ansiedade eram evidentes desde a infância. Se o atraso da mãe no horário de saída da escola era o tormento de inúmeras crianças, em que medida a angústia, os pensamentos acelerados e o peso no peito indicavam uma necessidade de cuidados? O quanto isso era viável numa época em que não se falava abertamente sobre saúde mental? Para além de questões de classe e acesso da personagem, nos anos 90, crianças geralmente só recebiam recomendações de acompanhamento psicológico quando alguma coisa afetava o desempenho escolar. A narradora é capaz de observar uma experiência individual e questionar os efeitos dessa lógica social numa geração de adultos.

Formação

Ao revisitar seus anos de formação, a protagonista discorre sobre como a infância e a adolescência misturam o encantamento com o mundo e a vulnerabilidade de depender dos adultos. E até os dias ruins têm bons momentos: as memórias incluem as tardes na piscina de plástico no quintal, sua sobremesa favorita e as viagens num carro velho que um dia deixaria a família a pé. 

A comida era uma das maneiras como os pais demonstravam cuidado e afeto. Isso se reflete na preocupação materna em garantir que a menina crescesse saudável ou na família reunida nos almoços no fim de semana. A compreensão de que os pais passavam boa parte do tempo tentando garantir a sobrevivência e o desenvolvimento de duas crianças e todo o trabalho envolvido na empreitada dá outra dimensão às lembranças.

Embora a relação com os pais e o irmão mais novo seja central no romance, as amizades são fundamentais para o autoconhecimento. Ao dividir a mesa da escola com André, que tinha fama de sujo, Natalia percebe como a reputação do colega é injusta. O menino que ia para a escola de chinelo não tinha problemas de higiene, e sim polidactilia (dedos a mais nos pés). A proximidade desfaz o equívoco e coloca a protagonista diante de uma situação na qual necessita repensar o que entende como asseio. Ela também precisa refletir sobre como ser uma boa amiga se traduz em atitudes e exige que saibamos comunicar sentimentos.

Boa parte do humor está nas reflexões de como crianças sobreviveram a hábitos perigosos

Como a escola é um dos espaços nos quais passamos muito tempo nos primeiros anos da vida, um episódio desagradável na sala de aula pode adquirir grandes proporções, especialmente quando evoca sentimentos de inadequação. Revisitá-los sob a perspectiva adulta é uma forma de entender as contradições infantis e perceber que amizades são um espaço de aprendizado. A convivência com André e Jovita faz com que Natalia note como cada um é diferente a seu modo. Conhecer os outros ensina que somos todos um pouco estranhos, ajuda a ficar em paz com nossas esquisitices. 

Na adolescência, os desafios da narradora ganham outros contornos. Entre festinhas, um primeiro beijo lamentável com um menino e as dúvidas em relação aos sentimentos, a vida se torna mais complicada. O casamento dos pais está em crise, a preocupação com o dinheiro deixa de ser exclusividade dos adultos, os livros se revelam grandes companheiros. 

A amizade é um refúgio em meio às inseguranças adolescentes. É com Ramona que a jovem desabafa a respeito de sua ansiedade e com quem aprende uma técnica que alivia o turbilhão de pensamentos. É a amiga que ironiza os “hábitos cabeçudos” da protagonista, quando se aflige com situações que fogem ao seu controle. Já os pais de Ramona apresentam a Natalia a possibilidade de arranjos afetivos distintos dos da sua família nuclear, dão-lhe esperança de que é possível ser filha de pais separados sem se tornar infeliz.

Foi um péssimo dia lança um olhar gentil para todo tipo de criança, jovem e adulto ao sustentar a premissa de que cada período da vida traz aprendizados, alegrias, desilusões. Ainda que o título sugira que os dias ruins pesam na memória, a narradora consegue se lembrar da menina que foi sem se render a uma lógica de que traumas e conflitos são fundamentais na formação. O romance equilibra com sutileza aspectos econômicos e sociais, traça um retrato divertido do que foi crescer nos anos 90 e cria um espaço de conciliação entre passado e presente. Ao desafiar o tempo linear, a literatura possibilita que outros futuros, mais acolhedores, tornem-se imagináveis aos jovens de hoje.  

Esse texto faz parte do especial “Livros e Livres”, sobre literatura LGBTQIA+, realizado com o apoio do Fundo de Direitos Humanos do Reino dos Países Baixos e publicado na edição #77 da Quatro Cinco Um

Editoria com apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos

Desde 2023, o Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos apoia a cobertura especial Livros e Livres, dedicada a títulos com temática LGBTQIA+

Quem escreveu esse texto

Stephanie Borges

Jornalista, ganhou o prêmio Cepe de poesia com Talvez precisemos de um nome pra isso (no prelo).

Matéria publicada na edição impressa #77 em novembro de 2023.