Literatura,

A escrita que mantém em pé

Jornalista desde os dezenove e escritora desde sempre, Rosa Montero fala sobre o poder da palavra, sexismo e autoficção

26jul2023 | Edição #72

Para a jornalista e escritora madrilenha Rosa Montero, a escrita é o esqueleto que a sustenta. No seu caso, é mais do que uma figura de linguagem: ela começou a trabalhar como jornalista aos dezenove anos. Escrevendo para o jornal espanhol El País, assistiu (e noticiou) de camarote a queda do Muro de Berlim, o fim da era soviética na Rússia de Gorbatchóv e as marchas feministas na Europa, e entrevistou gente como Yasser Arafat, Richard Nixon, Indira Gandhi, Julio Cortázar, Orhan Pamuk, Paul McCartney e Malala Yousafzai, entre as mais de 2 mil entrevistas que já fez na vida — hoje, suas técnicas são estudadas em escolas de jornalismo na Espanha.

Enquanto isso, no tempo livre, escrevia ficção. Com mais de trinta livros publicados, a escritora de 72 anos estreou no romance em 1979 com Crónica del desamor. Recebeu diversos prêmios por seus livros e, em 2017, o Prêmio Nacional das Letras Espanholas pelo conjunto de sua obra. Usando a experiência de jornalista/ensaísta, experimentou com o que chama de “artefato literário” — mistura entre ensaio, autobiografia não confiável, biografia e ficção. Mostrou em Nós, mulheres: grandes vidas femininas como ainda há histórias pouco ou mal contadas e tratou da condição feminina e do luto em A ridícula ideia de nunca mais te ver, ambos publicados pela Todavia, entre outros escritos feministas.

No final de maio, Montero esteve em São Paulo para abrir o ciclo de conferências de 2023 do Fronteiras do Pensamento. Em sua apresentação, falou da “inutilidade necessária” da arte e, em seu caso, da necessidade fundamental de escrever e ler, essa estranha forma de vida dos romancistas e outros profissionais da palavra. Nessa última visita — já esteve “quatro ou cinco vezes” no Brasil, a maioria a trabalho —, Montero recebeu a Quatro Cinco Um no terraço do hotel onde estava hospedada em São Paulo, poucas horas antes de sua conferência. 

Na conversa em excelente portunhol (tanto da entrevistada quanto da entrevistadora), vez ou outra interrompida por um avião cruzando o céu da Vila Olímpia ou por uma equipe que fotografava algum editorial de moda, Montero falou sobre jornalismo, ficção e autoficção, feminismo, o poder da escrita e de seu livro mais recente, sobre criatividade, loucura e a noção (fictícia) de normalidade.

Além de ser uma escritora celebrada, a Rosa Montero jornalista também é bastante conhecida e valorizada. Como as técnicas de jornalismo entram em sua ficção?
Creio que não entram. Jornalismo e ficção são dois gêneros opostos. No primeiro, a clareza é um valor, no segundo, vale a ambiguidade. Para o jornal, você escreve o que sabe; em romances, o que nem percebe saber, porque a linguagem da ficção nasce do mesmo lugar de onde nascem os sonhos, o inconsciente. [O romancista] não controla o que fala e não escreve para ensinar algo, e sim para aprender; o jornalista escreve para ensinar o que aprendeu de determinado assunto, é uma árvore falando das árvores ao seu redor; o escritor de ficção tenta ser uma águia, alçar voo e falar do que vê. São duas maneiras completamente opostas de se relacionar com a realidade.

‘Há notícias em jornais que não sabemos se foram inventadas. Isso é mau jornalismo’

Mas em um romance como A boa sorte são usadas várias notícias de jornal na trama. Por quê?
A boa sorte é um romance sobre o bem e o mal com M maiúsculo. Eu queria um exemplo desse mal absoluto, e esses casos sobre famílias que torturavam e assassinavam seus próprios filhos, que foram manchetes de jornal e estão no livro, me pareceram o exemplo perfeito do mal mais atroz e sem sentido. Se eu tivesse inventado os casos, os leitores não iriam acreditar, simplesmente não queremos ver essas coisas. Recorri a casos reais para que não tivessem dúvida de que aconteceram e acontecem. Mas também, hoje em dia, com as fake news, há notícias publicadas em jornais que não sabemos se foram inventadas ou não. Isso é mau jornalismo.

Considera-se mais romancista do que jornalista?
Eu me considero uma escritora que cultiva o jornalismo, a ficção e o ensaio. O jornalismo é um gênero literário que me ajuda a manejar as palavras. Embora sejam gêneros diferentes e até opostos, vejo duas coisas que podem ser influências da minha experiência jornalística nos meus romances. Uma delas é ter feito umas 2 mil entrevistas na vida. Se um escritor é um bom entrevistador provavelmente produzirá bons diálogos.

A outra coisa que aprendi trabalhando em jornal é cortar [o texto]. Antes da era digital, eu passava um mês fazendo uma reportagem e era um esforço deixar tudo em dezesseis páginas, mas quando entregava o texto para o editor eu tinha que cortar. Depois de sofrer muito para fazer isso, entrava uma publicidade [no jornal] e me avisavam que teria de cortar mais uma página e meia da matéria. Achava que estavam estragando o meu trabalho, mas, quando lia a reportagem publicada, percebia que estava melhor com os cortes. Um escritor não está maduro enquanto não consegue cortar o próprio texto, eliminar as partes que gosta, mas sabe que não funcionam no livro.

Pretende continuar fazendo entrevistas e reportagens?
Não faço mais jornalismo porque me cansa. Comecei a trabalhar aos dezenove anos, fui repórter, entrevistadora. Trabalhar em jornal é muito bonito, permite conhecer outros mundos, dá essa sensação de privilégio por assistir a história na fileira da frente. Escrevi cinco romances enquanto trabalhava em período integral no jornal. Fazemos o que podemos. Não dá para viver de literatura e nem é bom ganhar a vida com o trabalho literário. A ficção deve ser o mais livre possível e não seria assim se você tivesse que pagar casa e comida com seus romances, se preocupando se vai vender ou não. Claro que queremos vender, ser lidos, isso vem depois. Mas já fiz reportagens e entrevistas por cinquenta anos. Agora, para jornal, só quero fazer artigos ou ensaios.

Mais próxima do ensaio, escreveu livros como Nós, mulheres e A ridícula ideia de nunca mais te ver, que falam sobre a condição feminina. Como vê o feminismo hoje?
Eu reivindico a palavra feminismo por ser uma definição histórica, mas para mim uma definição melhor seria antissexismo. Porque não é só uma questão de mulheres. Estamos desconstruindo estereótipos, muitos homens estão se dando conta de que o sexismo é uma distribuição de valores tóxica, anormal e fictícia. Avançamos muito: em Madri, na manifestação de 8 de março de 2019, logo antes da pandemia, éramos 370 mil pessoas marchando [pelos direitos das mulheres]. E está acontecendo algo magnífico, que será uma mudança total.

Quando comecei a pesquisa de Nós, mulheres, há 28 anos, era raríssimo serem publicadas biografias de mulheres. Gosto muito de ler biografias, tenho umas setecentas na minha biblioteca, e percebi que havia muito mais mulheres importantes na história do que era divulgado e conhecido por todos. Hoje sabemos que em todas as épocas, em todas as áreas, em todos os países sempre houve mulheres fazendo coisas incríveis, mas suas histórias foram silenciadas e suas obras, roubadas. A história que nos ensinaram é uma fraude e pela primeira vez estamos construindo uma história autêntica. Isso vai provocar uma mudança radical na maneira de olharmos o mundo.

Gosta de biografias mas não de autobiografias, como afirmou em A ridícula ideia de nunca mais te ver
Nos romances, não gosto de narrativas que estão coladas no autor. Há grandes autores que fazem isso, o Proust, por exemplo, mas não sou esse tipo de escritor. Não gosto de partir das minhas realidades pessoais. O que me encanta em ser escritora é poder viver outras vidas. 

‘Terapêutico é algo como tomar uma aspirina, a literatura é muito mais que isso’

Então não faz autoficção?
De certo modo já fiz, em A louca da casa, A ridícula ideia de nunca mais te ver e em meu último lançamento, El peligro de estar cuerda [“o perigo de ser consciente”, em tradução livre]. Tenho dezoito livros que me parecem importantes, quase todos romances puros e três que chamo de artefatos literários, uma mistura rara entre ensaio, autobiografia não confiável, biografia e ficção. A autoficção é um recurso a mais. Não é o único nem o mais moderno. O que me horroriza é a moda, de repente todo mundo começa a escrever autoficção e ela é tão valorizada pelos críticos que parece ser a melhor literatura possível. Essa moda sinaliza também uma perda do músculo narrativo e da imaginação. 

Do que trata seu livro mais recente?
Como diz o título, do perigo de estar em seu perfeito juízo. Está previsto para ser lançado em novembro no Brasil [pela Todavia]. No livro, estão as perguntas que não tive oportunidade de ver respondidas quando era criança. Começa com a menina que sempre soube haver algo que não funcionava muito bem em sua cabeça e, a partir daí, tento adentrar nesse campo da relação entre criatividade e loucura, o que chamamos de sanidade e de realidade — ambas construções sociais. Ao final, acabo falando da vida e da morte, como sempre falo em meus livros. E esse último, desde sua publicação na Espanha, no ano passado, está recebendo muito mais respostas dos leitores do que os outros. É algo precioso, por ser um livro que reivindica a diferença: afinal, o que é ser normal?

Esse tema tem a ver com sua conferência no Fronteiras do Pensamento deste ano, em que fala da criatividade, da loucura e das possibilidades terapêuticas da escrita? 
Sim, está na conferência que preparei e num artigo que escrevi há pouco para o jornal El País. Há uma parte terapêutica na escrita que tem sido muito estudada. Pesquisas comprovam que escrever textos autobiográficos, por exemplo, dá a quem escreve uma sensação de plenitude e serenidade. Essa é a terapia para quem não é escritor — para nós, autores, o buraco é mais embaixo. Mas terapêutico é algo como tomar uma aspirina, a literatura é muito mais que isso. Para romancistas, escrever é viver.

Desde quando me entendo por gente, me recordo de estar sempre escrevendo, era e é minha maneira de viver. Tive tuberculose na infância e, enquanto estava em casa me recuperando, escrevia contos. Ao voltar para a escola, foi uma surpresa descobrir que as outras meninas não faziam isso. Se me perguntam quando decidi ser escritora, digo que não decidi, estava lá. Conhece o microconto do [escritor hondurenho] Augusto Monterroso: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.”? Quando despertei para a vida, a escrita já estava lá. A escrita é muito mais do que terapêutica, é estruturante, um esqueleto exógeno que me mantém em pé. Creio que todos os escritores têm a mesma sensação de que se deixassem de escrever, ficariam loucos.

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, , editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34)

Matéria publicada na edição impressa #72 em julho de 2023.