Entrevista,

Um retrato do artista quando jovem

Piedad Bonnett fala sobre como escrever ajudou a lidar com a perda do filho e iluminar aquilo que a linguagem não alcança

10maio2024
'Autorretrato', 2001, de Daniel Segura Bonnett (Divulgação)

Em julho de 2006, a escritora colombiana Piedad Bonnett embarcou com o marido e o filho para férias de dois meses no Brasil. Era, como descreve em O que não tem nome, o começo da “descida ao inferno” da família. Daniel havia avisado, semanas antes da viagem, que seu psiquiatra tinha suspendido sua medicação.

Por aqui, em meio a passeios nas praias do Nordeste e visitas a cidades históricas, sob o olhar vigilante da mãe, Daniel teve os primeiros surtos da esquizofrenia que o atormentou durante anos e o fez saltar do prédio em que vivia, em Nova York, cinco anos depois. Aluno de um mestrado em artes na Universidade Columbia, tinha acabado de completar 28 anos.

Mas não é para falar sobre a dor do luto ou dividir lições que Piedad Bonnett decidiu escrever o relato da morte do filho. Autora de premiadas coletâneas de poemas, além de peças de teatro e outros cinco romances, Bonnett escreve de maneira cortante, com palavras precisas, em uma prosa com mais dúvidas do que respostas.

“Nós escritores temos essa necessidade”, diz, ao receber a Quatro Cinco Um numa tarde de abril, em Bogotá, no seu apartamento repleto de livros e de telas pintadas por Daniel. “É como se a vida em si não servisse, como se tivéssemos que lhe dar sentido pelas palavras.”

Bonnett já era razoavelmente conhecida na Colômbia quando publicou O que não tem nome, em 2013. No lançamento, num auditório para quatrocentas pessoas, havia filas do lado de fora. Muitas a procuram até hoje para, finalmente, falar abertamente sobre a doença mental de que padecem ou de alguém querido que se matou. “Ali, eu percebi que tinha tocado em dois assuntos muito silenciados.”

Nós escritores temos essa necessidade. É como se a vida em si não servisse, como se tivéssemos que lhe dar sentido pelas palavras

Mais de uma década depois, uma edição comemorativa de dez anos do romance autobiográfico, com ilustrações de Daniel, estava entre os dez títulos mais vendidos da Filbo, a Feira Internacional do Livro de Bogotá. No evento, a escritora dividiu uma mesa sobre arte e escrita como catarse com a espanhola Rosa Montero, diante de uma plateia cheia. 

O livro, seu primeiro publicado no Brasil, chega ao país pela editora DBA, na tradução sensível de Elisa Menezes. Convidada para feiras literárias brasileiras, a escritora comenta que não sabe se voltará ao país, quer uma companhia para a viagem. Pergunto se a lembrança das férias com Daniel, há dezoito anos, gerou um trauma. “Não mais, tenho que superar isso”, diz ela. “Adoraria falar desse romance no Brasil.”

No prólogo da edição brasileira, você diz que não conseguia reler O que não tem nome por temer reviver “uma dor que dilacera e machuca cada vez que algum detalhe, alguma lembrança a desperta de sua falsa letargia”. Por que então decidiu escrever essa história revivendo-a em detalhes?
Quando chegamos aqui, de Nova York, tudo era muito duro, desolado, triste. Daniel viveu conosco nesse apartamento quinze anos. Então decidimos tirar umas férias, e nos momentos de silêncio, nas viagens de trem, comecei a me dar conta dos últimos dez meses de Daniel. Todos os enganos que o fizeram achar que escolheu mal a carreira, o médico que o havia abandonado, as exigências da universidade que ele não conseguia cumprir. Depois, repassei os dez anos da doença e comecei a fazer um balanço dos erros médicos, de como nós mesmos demoramos para perceber o que se passava. Foi quando pensei: isso é como uma tragédia grega, um homem lutando contra o destino. Fizemos tudo o que podíamos, como se vê no livro, e, no entanto, há uma derrota. 

Nesse momento, eu pensei que tinha que escrevê-la e estremeci. Acho que nós escritores temos essa necessidade. É como se a vida em si não servisse, como se tivéssemos que lhe dar sentido pelas palavras. 

A escritora colombiana Piedad Bonnett (Oscar Monsalve/Divulgação)

Primeiro, pensei em escrever um romance e no mesmo instante me envergonhei: sou incapaz de transformar meu filho em personagem, lhe dar outro nome. Decidi, então, fazer um livro-testemunho. Agora, penso que escrevi sobretudo para não deixar Daniel ir, para recuperá-lo, para entender todas as questões que eu me colocava. Também porque era um feito político, uma declaração de respeito ao suicídio, um modo de chamar atenção para as doenças mentais, falar da medicina nesse país, discutir a ideia de sucesso. 

Você retrata Daniel de um jeito afetivo, mas também preciso, reconhecendo suas qualidades e limitações, o fato de que desconfiava do próprio talento e não falava sobre a doença mental. Teve a preocupação de não tornar o filho um herói?
Fui professora universitária por 32 anos. Sempre disse a meus alunos: “Sem sentimentalismos, sem idealizações”. Tinha muito claro o que não podia fazer. Não queria me colocar em primeiro plano, queria estar à margem, construindo com minha memória. E não queria fazer de Daniel um ser excepcional, um herói. Queria que qualquer um que lesse pensasse que ao seu lado pode haver um ser humano que está sofrendo. Eu o construí com o amor que tinha por ele — era um ser doce, respeitoso, um homem belo, mas também muito introvertido, carregado com essa dor.

A narrativa expõe uma dor coletiva ao descrever as reações do pai, das irmãs, dos cunhados e amigos de Daniel. Conversou com sua família sobre a publicação dessa história íntima? 
Tive uma conversa mínima com minhas filhas e marido. Eles tinham medo, perguntavam se eu estava segura e eu dizia que sim. Não disse nada a mais ninguém. Quando terminei o livro, pedi que minhas filhas lessem e dissessem se queriam ou não que publicasse, mas elas não quiseram ler. Meu marido também disse que não conseguiria. 

Não queria fazer de Daniel um um herói. Queria que qualquer um que lesse pensasse que ao seu lado pode haver um ser humano que está sofrendo

Depois da publicação, a primeira a ler foi minha filha Camila. Uma noite, ela me mandou uma mensagem: “Mamãe, li seu livro. Hoje vou dormir com Daniel mais vivo que nunca”. Minha filha Renata, que é mais cerebral, me mandou umas correções, do tipo “não era o quinto andar, era o sexto”, e não muito mais do que um “está bem, mamãe”. E faltava meu marido. Um dia, meses depois, eu o vi com o livro na cozinha e, daqui do meu escritório, eu o ouvia chorar. Foi muito duro. Quando ele subiu, falou: “Você não escreveu isso” — sem acreditar que eu tinha publicado essa história. E eu disse: é o que eu faço, sou escritora. Mas perguntei se havia algo que eu não devia ter colocado, queria respeitar esse entorno, a memória de Daniel, não queria ter interpretado mal algo. E ele disse que não. 

Você também comenta no prólogo sobre leitores que se aproximaram para compartilhar suas histórias de suicídio e doença mental. Há alguma que mais marcou?
Tive quatro histórias muito impactantes. Uma mãe me procurou, depois de ler o livro, para contar que seus dois filhos tinham alguma doença mental, que ela acreditava ser esquizofrenia e vinha negando a si mesma até então. Ela chorava, num desespero enorme… Outros pais me contaram que o filho era músico e fugia durante a noite, e que sofriam porque ele demorava a voltar. Falo sobre esse garoto em um poema do livro Los habitados (2017, inédito em português). Um dia ele se perdeu e ajudei nas buscas, com a imprensa, até que apareceu. Nunca conheci esse garoto, mas partiu minha alma. 

Outra história que me marcou foi a de um biólogo, inteligentíssimo, que me escrevia muito magoado sobre sua doença, dizia que não conseguia fazer mais nada, falava de Deus e de sua descrença. Tenho todas as cartas ainda. E também há a história que menciono no prólogo de um rapaz que estava no hospital com o pai e leu o livro no celular, e ali se deu conta de que sofria do mesmo mal, estava paranoico. Durante uns dois anos eu respondia todas as cartas, mas era um esforço enorme. Hoje ainda respondo, mas minimamente porque me esgotei. 

O que não tem nome revela, entre outras coisas, nossa inabilidade em lidar com a morte, principalmente por suicídio. Por que acha que insistimos nessa negação? 
São dois tabus: o suicídio e as doenças mentais. Sobre o suicídio, a religião criou um estigma enorme, fez acreditar que era um pecado. Por isso, disseram ao meu tio que meu filho tinha sofrido um acidente de carro. Esse terror cria uma ideia de culpa ou de que a pessoa que se mata é covarde. Por isso, muitos preferem se calar. Uma vez, uma velhinha de uns noventa anos me agradeceu, disse que eu havia revelado que se pode falar de suicídio — o filho tinha se suicidado havia 35 anos e ninguém na família voltou a dizer seu nome. 

O tabu das doenças mentais é diferente. O próprio doente não quer que saibam o que ele tem, por isso nos calamos. Entendo que algumas pessoas tenham medo. A imprensa vive mostrando casos aterradores de alguém que entrou em algum lugar com um fuzil e atirou… Então, acredita-se que pessoas com doenças mentais em geral são perigosas. Mas a maior parte só causa danos a si mesma.

Na Filbo, você conversou com a espanhola Rosa Montero sobre “A arte e a escrita como catarse”. A escrita do livro, embora você diga que não a fez em busca de uma cura, teve algo de catártico?
Sim. A psicologia e a psiquiatria te fazem contar muitas vezes o que aconteceu com você. Quando comecei a escrever esse livro, eu me sentava e pensava: o que vou contar hoje? E recordava pequenas coisas. Daniel subindo essa rua. Essa visão tão simples me fazia chorar. Eu olhando pela janela e vendo ele sentado no ponto esperando o ônibus. Isso me enternecia e doía, chorava um pouco e logo estava escrevendo. Foi um processo catártico porque me pus a escrever com a ferida ainda muito aberta. E não parei de falar mais, porque não me deixam sair desse lugar. Já escrevi outros dois romances, mas o assunto volta. 

O que não tem nome foi publicado em 2013 e no ano passado ganhou uma edição comemorativa de dez anos com os desenhos de Daniel. Por que só agora chega aos leitores brasileiros? Ainda há barreiras entre essas literaturas vizinhas?
Talvez pela língua. Como o Brasil pode ser tão grande e fechado? Conhecemos alguns grandes autores, em meus cursos ensinava Ferreira Gullar, mas a literatura mais contemporânea não chega a nós. A América Latina em geral é muito compartimentada no campo editorial. Meus livros, por exemplo, são mais conhecidos na Espanha do que no Peru. No caso do Brasil, creio que há necessidade de mais traduções. Autores grandes, como Clarice Lispector, encontramos hoje, mas não há um fluxo constante de publicações entre os dois países. 

Em uma entrevista, ao explicar o sucesso do livro, você diz que “a paixão por histórias verdadeiras é enorme”. O que pensa sobre essa onda de autores de autoficção?
Em minha geração, escrever sobre si era um pecado. Para nós, que éramos todos marxistas, era considerado algo burguês, narcisista. Tínhamos que escrever sobre a realidade dos outros. Mas o mundo mudou muito. E essa época colocou o indivíduo em primeiro plano. Estamos no Instagram, no Facebook, contando toda a vida. E, para além disso, nós mulheres encontramos a possibilidade de falar de uma vida íntima que não havíamos contado nunca. Começamos a falar sobre a maternidade, o casamento, o amor, o divórcio. 

Uma velhinha me agradeceu, disse que eu havia revelado que se pode falar de suicídio — o filho tinha se suicidado e ninguém voltou a dizer seu nome

Annie Ernaux ganhou o Nobel com romances em que se expõe completamente sobre temas tabus. E como ela mesma disse, não há relato autobiográfico bom que não ilumine uma época. Quando falo dos medos que as mulheres da minha geração tinham, estou iluminando minha mãe, minha avó, as mudanças, que é o que me interessa. As pessoas sempre foram fascinadas com as histórias “baseadas em fatos reais”. O interessante de agora é que essa pode ser a história de um ser humano qualquer, que pode ter uma vida interior valiosíssima, digna de ser contada. Isso me parece uma grande conquista.

Você é autora de nove livros de poemas, além de antologias, seis obras de teatro e seis romances. Como decide o formato narrativo de cada história?
Um escritor não tem dúvida disso. A história chega como uma flecha. Escrevo muitas ideias nos voos. Tenho mil cadernos espalhados. Alguns são para poesia, outros para anotações diversas. Eu os releio de vez em quando para ver o que está vivo. Com os romances é diferente. Quando tenho a ideia, começo a tomar nota de tudo o que leio, ouço e isso me nutre, ajuda a memória.

*O repórter viajou a convite da Feira Internacional do Livro de Bogotá e do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.

Nota do editor
O Centro de Valorização da Vida (CVV) oferece atendimento de prevenção ao suicídio pelo telefone 188. O serviço funciona 24 horas por dia, sete dias por semana.

Quem escreveu esse texto

Amauri Arrais

É jornalista e editor da Quatro Cinco Um.

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