Entrevista,
Uma experiência da vida e da morte
O aborto me permitiu ser a mulher livre que sou hoje, diz a francesa Colombe Schneck, que estará no FliMUJ
01dez2023No início de sua participação na 21ª Flip, na tarde do sábado (25), ao atender o pedido da mediadora, a jornalista portuguesa Anabela Mota Ribeiro, para ler um excerto do seu livro, Dezessete anos (Relicário), a escritora Colombe Schneck leu um trecho do final do romance. “Não há suspense no meu livro. É a história de um aborto e sabemos como acaba”, justificou.
Na passagem, se dirige ao bebê que não teve em 1984, quando tinha dezessete anos, experiência sobre a qual só conseguiu falar décadas depois, após ler uma entrevista da Nobel Annie Ernaux sobre sua própria experiência de aborto, descrita em O acontecimento. “Aquela primavera de 1984 foi uma experiência total, da vida e da morte, do tempo, da moral e do interdito”, leu a jornalista e escritora. “Sua ausência me acompanha há trinta anos e me permitiu ser a mulher livre que eu sou hoje.”
Schneck diz que estava ansiosa para vir ao Brasil e encontrar mulheres e homens que lutam pelo direito delas decidirem sobre seus próprios corpos. Embora tenha se beneficiado da lei que tornou o procedimento legal na França em 1975 – onde agora se discute sua inclusão na Constituição –, afirma que o silêncio e a vergonha sobre o tema ainda atinge a maioria das mulheres e que mesmo a literatura trata pouco do assunto.
Temas espinhosos não costumam intimidar a jornalista e escritora, que participará, no FliMUJ, o Festival Literário do Museu Judaico de São Paulo, da mesa “Você acha que alguém como você pode escrever sobre a Shoah?”. Em entrevista realizada por e-mail durante sua visita ao Brasil, Schneck conta como o silêncio da mãe – judia que viveu escondida num convento durante a ocupação nazista na França – a estimulou a escrever La Réparation, romance ainda inédito no Brasil e de como redescobriu seu judaísmo durante a escrita.
Dezessete anos é seu primeiro livro publicado no Brasil, onde o aborto ainda é cercado de tabu e preconceito. Tem sido assim também em outros países?
Aborto é um assunto “ruim” no mundo todo. É pior no Brasil, mas as perspectivas não são boas na Argentina, com o novo presidente eleito, é muito difícil de tratar nos Estados Unidos e em muitos outros países. Mesmo na França, onde é legal e estamos no processo para incluir na Constituição, as pessoas contrárias são ainda muito ativas e não podemos descuidar. Quando adolescentes buscam informação na internet, elas encontram sites muito bem diagramados com motivos femininos financiados por organizações antiaborto.
Sou muito agradecida à lei Veil por, aos 17 anos, ter sido considerada uma pessoa e não uma máquina de produzir bebês
Eu estava muito interessada em vir ao Brasil e encontrar mulheres e homens que lutam pelo aborto. Rebecca Solnit, a escritora norte-americana, diz que não existirá equidade de gênero sem o direito legal ao aborto. O argumento dela é: os homens não têm seus corpos regulados pela legislação, por que as mulheres devem ter? Sou muito agradecida à lei Veil por, aos dezessete anos, ter sido considerada uma pessoa e não uma máquina de produzir bebês.
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Você já contou que se sentiu encorajada a escrever o livro depois de ver uma entrevista com a Annie Ernaux sobre o aborto dela, narrado em O acontecimento. Teve a oportunidade de conversar com a autora sobre isso?
Foi uma entrevista de Annie Ernaux num jornal francês, lembrando “a solidão sem limites que cerca uma mulher que faz um aborto”. Ela experimentou essa solidão em 1964, aos 23 anos. Naquela época, o aborto era um crime previsto em lei. Ela descreve como procurava em bibliotecas livros em que a protagonista quisesse fazer um aborto e não encontrou nenhum. O aborto não é um assunto da literatura.
Eu ouvi Ernaux. O que ela disse sobre o silêncio e a vergonha quando fazemos um aborto, sobre como “mulheres não têm nenhuma garantia” mas não “se mobilizam o suficiente”. Senti como se tivesse falando comigo, dizendo: “Colombe, você fez um aborto, usou a lei, e nunca falou sobre isso”. Então, escrevi para ela. Ela é uma mulher muito generosa e respondeu que conhecia uma editora. O nome dela era Juliette Joste e ela ficaria feliz em publicar a história do aborto se eu escrevesse. Eu escrevi e Juliette publicou.
Vinte anos e muitas mudanças separam sua experiência da de Ernaux. Você realizou o aborto quando já era legal na França, num hospital, acompanhada pelo seu pai. Mesmo assim, não falou sobre a experiência por anos. Por quê?
Há muitas razões. Nosso útero e suas diferentes funções, ações, poder, manifestadas pela menstruação, ovulação, gravidez e menopausa é motivo de constrangimento e tabu, e tudo que envolve o assunto é meio disfarçado. Na França, por exemplo, os anúncios de absorventes mostram um líquido azul em vez de vermelho.
Muito nova, tive que aprender sobre métodos contraceptivos (mas não o namorado com quem eu fazia sexo) e eu falhei, não sabia direito quando tomar a pílula e me senti decepcionada, incapaz e só queria esconder minhas deficiências, minha incapacidade de controlar meu corpo. Não sou a única que se sentiu assim. Quando o livro foi publicado na França, duas mulheres me contaram que fizeram um aborto e nunca tinham contado a ninguém.
No livro, você narra a falta de diálogo com sua mãe, antes e depois do aborto, sobre sexo e outros temas, a despeito de ter vivido num ambiente mais liberal. Como isso impactou a sua descoberta da sexualidade e sua própria maternidade?
Minha mãe era uma mulher muito calada, não só não conseguia dividir as próprias experiências como também não conseguia participar das grandes e pequenas tristezas dos filhos. Mesmo criança, eu achava que tinha de respeitar o silêncio dela, não fazer perguntas e perdoá-la por não fazer parte do nosso mundo. Ela nunca falou sobre amor, sexo ou mesmo menstruação. Não conseguia abraçar ou tocar os filhos. Para me acordar, quando criança, ela beliscava minhas costas. Era o que conseguia fazer. Então, um aborto de sua filha de dezessete anos? Impossível. Meu pai era bem diferente. Ele tomou conta de mim, mas morreu quando eu tinha 23.
O silêncio da minha mãe foi a maior tristeza da minha infância. Ela nunca falou sobre o que aconteceu a ela durante a guerra, sua história terrível, como sobreviveu. Criança judia, ela viveu escondida num convento durante a ocupação nazista na França. Um dia, quando eu estava grávida do meu primeiro filho, ela me pediu um favor com um sorrisinho estranho, um tom de voz como se fosse confessar algo do passado: “Se você tiver uma filha, pode colocar o segundo nome de Salomé? É o nome da minha prima e não restou nada dela”.
Eu disse que sim, mas não ousei perguntar nada a ela sobre Salomé. Não estava preparada para saber e nem acostumada a falar abertamente com minha mãe. Ela morreu dois anos depois que minha filha nasceu e não conheceu a neta Salomé, o que é um grande arrependimento meu. Levei dez anos para procurar saber, entender e escrever sobre os motivos do silêncio da minha mãe, no livro La Réparation.
Aqui no Brasil, além de ilegal e um tema tabu, a proibição do aborto vira uma questão de classe, que atinge principalmente mulheres mais pobres. A literatura é capaz de mudar cenários como esses?
Como é impossível proibir que as mulheres façam abortos, o aborto se torna um problema de classe. Esse também foi o caso na França antes da legalização. A lei não era respeitada, mas quando se é pobre, você coloca sua vida ainda mais em risco. Muitas mulheres ainda morrem fazendo abortos ilegais. Não sei se a literatura pode provocar mudanças. Ler coloca você numa posição íntima e talvez pronta para aceitar uma mudança na percepção e na sua postura.
No FliMUJ, você participará do painel “Você acha que alguém como você pode escrever sobre a Shoah?”, pergunta que está em La Réparation, livro ainda inédito no Brasil. Que desafios um autor contemporâneo enfrenta ao tratar de tragédias históricas como o Holocausto?
Me senti culpada quando escrevi La Réparation dez anos atrás, descobrindo enquanto escrevia e escrevendo enquanto descobria. Não tinha distância do tema. Talvez esse seja o ponto forte do livro, a sensação de ter caído numa armadilha na época. Quando o escrevi, achei que podia recomeçar, longe do horror. Fui ingênua: é passado e ainda está no meu sangue.
Dez anos atrás, quando o publiquei, achava que podia superar, deixar o passado para trás. Eu conhecia a história, tinha lido cada livro sobre a Shoah. Sabia o bastante sobre o Holocausto, os sobreviventes, seus sotaques iídiche, suas queixas. Estava à beira de cair no antissemitismo. O problema é que o judaísmo em mim não iria embora. Não me abandonaria. Algo estava me corroendo o estômago. Quantas vezes eu teria que ouvir minha avó falar sobre sua constipação, seus pesadelos; e se os nazistas voltassem, o que faríamos?
Tenho assistido importente à tragédia em Gaza, mas também na Síria, Iêmen, Afeganistão, o genocídio dos uigures na China e rohingyas em Mianmar, pelos quais não vi muitas manifestações
Ano passado, eu estava viajando num trem de Paris para a Suíça quando, de repente, senti esse peso no estômago. O que estava acontecendo? Onde estava a mulher adulta e segura que eu era? Tinha chegado à estação e percebido que, por uma ironia do destino, meu trem era da Deutsche Bahn, a companhia alemã de trens. Lembrei de uma piada, a única que minha mãe costumava contar: “Agora, para pegar um trem para a Alemanha, precisa de passagem”. Eu tinha uma passagem na bolsa, mas meu corpo, sessenta anos depois da guerra, ainda me dizia para ficar alerta. Para meu corpo, pegar um trem alemão ainda é um risco. Então não posso mais me dar ao luxo de me sentir culpada.
Tenho assistido impotente à tragédia em Gaza, mas também na Síria, Iêmen, Afeganistão, o genocídio dos uigures na China e rohingyas em Mianmar, pelos quais não vi muitas manifestações. Judeus são o povo para culpar, e eu sei disso pela experiência dos meus pais, avós e primos, o que move o antissemitismo é a sua destruição.
No Brasil, a atual guerra entre Israel e a Palestina é um dos temas que mais mobilizam o debate, com grande interesse em entender o conflito mas uma forte polarização. É possível debater o tema sem se render a essa polarização?
A literatura é o lugar em que somos todos humanos, e não precisamos nos render e ter a obrigação de sentir empatia ou tristeza por palestinos, israelenses, muçulmanos ou judeus. Mahmud Darwich, poeta palestino, escreveu que um dia israelenses e palestinos viverão em paz, mas uma mãe jamais terá seu filho morto de volta.