Coluna

Kalaf Epalanga

Um benguelense em Berlin

O ano em que Chiziane ganhou o Camões

Moçambicana é a primeira mulher africana a ganhar essa distinção, em um ano no qual o tanzaniano Abdulrazak Gurnah recebeu o Prémio Nobel de Literatura

01dez2021 | Edição #52

E eis que chegamos ao fim de 2021. Um ano quase igual ao anterior e que muitos de nós iremos optar por esquecer. Um ano que, apesar das desgraças que não vale a pena enumerar aqui — também por continuarem bem frescas na nossa memória —, até que passou rápido, não foi? Há quem goste de reservar o mês de dezembro para rescaldos e introspecções. Paulo Werneck, o bem-humorado editor desta revista, que tive o prazer de encontrar pessoalmente numa noite de outubro em Lisboa, é uma dessas pessoas e a ele devo o tema deste texto.

Saíamos da Fundação José Saramago, no Campo das Cebolas. Dentro do táxi, os passageiros Yara Nakahanda Monteiro, Sónia Balacó e Jeferson Tenório compunham o leque de escritores famintos que nos acompanhavam até ao bairro do Príncipe Real. Mesmo com o estômago colado às costas, um editor que se preze nunca se esquece do dever e relembrou-me do prazo de entrega (que, como todo cronista que se preze, raramente consigo cumprir) e se já tinha um assunto para a próxima crónica. Não tinha e a sugestão não demorou — que tal uma lista de livros ou canções que o tenham marcado? Desculpou-se imediatamente pela ousadia, pois entendia que não era seu lugar condicionar a minha escolha, mas imaginando que no espaço de escassas semanas estaria eu roendo as unhas diante da página em branco, buscando nos galhos do carvalho plantado em frente a minha janela assunto que mereça dissertar algumas considerações, por que não ouvir o editor?

A minha resposta foi de que haveria de pensar, havíamos chegado ao destino, e diante do número 178 da rua do Século, só um único tópico merecia atenção: comida. Tocada a campainha, o sr. Albino, o septuagenário proprietário do Bar Snob, abriu-nos a porta daquela instituição gastronómica inaugurada pelo ilustrador e verdadeiro homem da Renascença, Paulo Guilherme d’Eça Leal, e que desde 16 de novembro de 1964 tem vindo a alimentar jornalistas, escritores, políticos e boémios noturnos de toda espécie, que encontram conforto no bife afogado no molho à snob e no vinho que ali é servido todos os dias das 19h às 3 da manhã, exceto no Natal. Respeita-se uma regra de ouro: não se escreve o que se ouve no Snob, e o que se passa no Snob fica no Snob. Nada mais direi sobre a noite em que conheci Paulo Werneck e Jeferson Tenório.

Posso afirmar, contudo, que no ano em que conheci o editor da Quatro Cinco Um também li o maravilhoso e obrigatório O avesso da pele, de Tenório, um romance que, além de nos alertar de que enquanto lamentamos as mortes de afrodescendentes às mãos de polícias americanos, os brasileiros têm os seus próprios nomes a acrescentar àqueles que não devem ser esquecidos: João Pedro Pinto, Iago César Gonzaga, Evaldo Rosa, Claudia Silva Ferreira, Luciano Macedo, Luana Barbosa dos Reis Santos, Ágatha Félix, Amarildo Dias de Souza, Maria Eduarda Alves da Conceição… O livro, com uma trama bem rendilhada, cheia de nuances e sutilezas sobre relações familiares, comove-nos até ao âmago da alma.

Quanto mais leitores se mostrarem interessados em obras de autores africanos, mais escritores se afirmarão

Este foi um ano cheio de comoções literárias, tantas que cheguei a desconfiar. Será que o meu conterrâneo José Eduardo Agualusa estava certo, será que está iminente o afroboom literário que apontou depois da última edição presencial da Festa Literária de Paraty, em 2019? Otimista crónico, o autor de O ano em que Zumbi tomou o Rio sempre acreditou na riqueza étnica do continente e no gosto por contar histórias, depurado pela longa e secular tradição oral, que resistiu à ditadura dos novos meios de comunicação impostos pela turminha do Vale do Silício, e deu o vaticínio: quanto mais leitores se mostrarem interessados em obras de autores africanos e afrodescendentes, mais escritores surgirão e se afirmarão.

E como se afirmaram e reafirmaram. Este 2021 que se agora se despede foi um ano de fartura para a literatura produzida por escritores africanos do continente e da diáspora. O mais recente de que tive notícia foi o prémio Giller, entregue ao escritor e jornalista canadiano de origem egípcia Omar El Akkad com o livro What Strange Paradise (Que estranho paraíso), que apresenta de forma comovente uma história mais antiga que a própria Bíblia, a crise global dos refugiados, sem nunca tirar os olhos daquilo que move verdadeiramente a literatura, a esperança.

Prémio Camões

A escritora moçambicana Paulina Chiziane, autora do livro Balada de amor ao vento (1990), foi a primeira mulher a publicar um romance no seu país, e o Prémio Camões que lhe foi atribuído este ano faz dela a primeira mulher africana a receber essa distinção e a terceira autora moçambicana, a seguir a José Craveirinha em 1991 e Mia Couto em 2013. A forma cândida como ela descreveu o momento em que a notícia da vitória lhe chegara é tão lírica quanto a sua escrita. Foi surpreendida por um telefonema desde Portugal no exato momento em que colocara a M’boa no fogo, aquele guisado de folhas de abóbora. Não chegou a ver o prato, pois a notícia varreu Maputo mais rápido que fogo em floresta de eucaliptos. Familiares e amigos apressaram-se a visitá-la, telefonemas de felicitações choveram e a comoção foi tanta que foi preciso uma vizinha alertar: “Estou a ver fumo na tua cozinha, o que está a queimar?”. Eram as folhas de M’boa carbonizadas. Numa entrevista a partir do seu quintal no bairro Albasine disse: “Gente que vem do chão, como nós, moçambicanos e africanos de maneira geral, não estamos habituados a essas coisas boas. Estamos mais habituados à dor, porque houve um acidente aqui, um desastre ali, nós sabemos melhor gerir a dor do que a felicidade”.

Pelo meio tivemos o romance Murambi, o livro das ossadas, um relato minucioso a várias vozes do genocídio ruandês de 1994, escrito por Boubacar Boris Diop, que conseguiu a proeza de arrebatar o prestigiado prémio literário Neustadt, considerado o “Nobel americano”. Tsitsi Dangarembga, a autora da celebrada trilogia Tambudzai, fez história ao se tornar a primeira mulher galardoada com o Peace Prize deste ano, uma distinção que visa premiar as contribuições para a literatura e promoção das liberdades civis ao longo da carreira da homenageada. E o autor sul-africano Damon Galgut recebeu o Booker Prize com o romance A promessa, um épico intergeracional com temas arrebatadores de lealdade, confiança e traição, juntando-se assim ao quinteto de autores africanos a ganharem essa honra. O Booker International acabou por ser atribuído ao escritor franco-senegalês David Diop pelo seu segundo romance, At Night All Blood is Black (À noite todo sangue é negro), que diz ter sido inspirado no silêncio do seu bisavô senegalês sobre as suas experiências na Primeira Guerra Mundial.

E, para fechar 2021 com chave de ouro, o Nobel: o escritor tanzaniano radicado em Londres Abdulrazak Gurnah, autor de dez romances, é o sétimo africano a ganhar o Nobel de Literatura, juntando-se à prestigiante lista que inclui Albert Camus (1957), Wole Soyinka (1986), Naguib Mahfouz (1988), Nadine Gordimer (1991), J. M. Coetzee (2003) e Doris Lessing (2007). A escritora etíope Maaza Mengiste, em artigo no The Guardian, escreveu que o autor tem escrito com uma convicção silenciosa e inabalável sobre aqueles que são relegados para os cantos esquecidos da história. O laureado pertence ao grupo de escritores que, embora não gozem de vasto reconhecimento, na sua ficção e nos seus ensaios, têm vindo a escrever histórias sobre a vida dos invisíveis e humilhados, aqueles cuja existência foi reduzida a números estatísticos sem rosto ou nome, à mercê de todo tipo de injustiça. Por amor ao ofício da escrita, sem o alarido e a pompa com que o mundo brinda os títulos que habitam as listas dos mais vendidos, é igualmente recompensador.

Que 2022 nos seja generoso.

Quem escreveu esse texto

Kalaf Epalanga

Escreveu Também os brancos sabem dançar (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.