Coluna

Kalaf Epalanga

Um benguelense em Berlin

A fábrica da morte

Volto a sentir o braço da minha mãe à volta de mim e dos meus irmãos, apertando os nossos corpos sempre que uma bomba caía, fazendo estremecer a casa e nossas almas

01abr2022 | Edição #56

Em 1992, eu estava em Benguela a saborear a minha entrada na adolescência, entrincheirado no quarto dos fundos do lar materno, enquanto bombas e tiros sobrevoavam os nossos telhados. Naquele momento, aterrorizado pelo som das explosões e balas que perfuravam as nossas paredes, comecei a desinventar o mundo, somando ao meu parco repertório de certezas absolutas o medo da morte, o desalento, a maldade humana e, por fim, a desesperança. Era a guerra com toda a sua voracidade pelas coisas belas da vida, reclamando tudo o que tínhamos em nosso nome. Até as minhas memórias, acumuladas durante a minha primeira década de existência, foram arrancadas de mim, e expressões como “há de chegar o teu tempo” e “ainda tens toda uma vida pela frente” soavam-me a escárnio.

Passaram-se trinta anos, mas sempre que desfilam diante dos meus olhos imagens de zonas de guerra não deixo de voltar à aquele quarto escuro. Foi assim com a Líbia, Etiópia, Síria e, claro, Ucrânia, só para apontar alguns dos conflitos armados mais recentes e que tiveram espaço midiático. Volto a sentir o braço da minha mãe à volta de mim e dos meus irmãos, apertando os nossos corpos sempre que uma bomba caía, fazendo estremecer a casa e as nossas almas. Ela também tinha medo, um medo diferente do nosso, seus filhos, mas só agora, como pai, consigo imaginar o tamanho da sua aflição. Daí a minha solidariedade para com todas as famílias afetadas pela guerra.

Em 2002, com o fim da guerra que fizera a minha mãe enviar-me para a Europa, eu e muitos da minha geração — que nasceram e cresceram durante os anos da Guerra Fria — tínhamos como desejo maior pôr fim aos exílios que aquela guerra nos impusera durante os longos e penosos 27 anos de conflito que os livros de história classificam de guerra civil. Mas para nós a realidade sempre se revelou muito mais complexa. As causas não cabiam na narrativa dos conflitos étnicos e regionais. Aquela guerra era tanto nossa como também do Kremlin e da Casa Branca e todos os aliados, directos e indirectos, nações que estavam dispostas a manchar as mãos de sangue, como o caso de Cuba e da África do Sul dominada pelos bôeres.

Matamos pessoas que são diferentes de nós em aparência, crenças, raça e estatuto social

A primeira vez que chorei por Angola foi durante a travessia da ponte que separa o norte e o sul do país na pequena e histórica vila da Canjala. José Eduardo Agualusa escreveu, no seu romance As mulheres do meu pai, o seguinte: “O trecho da Canjala, cenário de sangrentas emboscadas durante a guerra, continua por reconstruir. Ali se preservam, intactos, muitos milhares de ferozes buracos, talvez a maior colecção do mundo. Naquela tarde estavam esfaimados. Lançaram-se contra nós com a voracidade de piranhas”. A paisagem lunar e os destroços de veículos militares que ali encontrei no meio daquele verde exuberante eram como um memorial gritando em silêncio o slogan “nunca mais”, homenageando todos os que perderam a vida a lutar por aquele pedaço de estrada suspensa nos dois lados do conflito, sabendo que quem saiu a perder não foram só os angolanos, mas sim toda a humanidade.

E é exactamente isso o que se perde sempre que alimentamos esse ciclo de carnificina. Enquanto nós enquanto espécie não quebrarmos essa maldição, ela irá nos consumir. Enquanto permitirmos ficar reféns da vontade dos fabricantes de armas e de políticos que nos querem ver zangados e com medo dos nossos semelhantes, essa raiva e esse medo serão o fim da humanidade, pois bastará apenas uma pitada a mais da nossa velha e casmurra estupidez para acreditar que o uso de armas nucleares para defender qualquer ideologia ou doutrina religiosa é justificável. Que o universo, Jesus, Maomé, Jeová e todos os outros santos e orixás nos salvem de nós próprios.

A matança dos diferentes

O neurocientista e autor R. Douglas Fields tem uma passagem no seu livro Why We Snap: Understanding the Rage Circuit in Your Brain que me parece importante realçar. Ele diz: “Os (animais) carnívoros matam por comida; nós matamos os nossos familiares, os nossos filhos, os nossos pais, os nossos cônjuges, os nossos irmãos e irmãs, os nossos primos e sogros. Matamos estranhos. Matamos pessoas que são diferentes de nós em aparência, crenças, raça e estatuto social. Matamo-nos no suicídio. Matamos por vantagem e por vingança, matamos por entretenimento: o Coliseu Romano, tiroteios de carro, touradas, caça e pesca, matança de animais na estrada num reflexo instantâneo por desporto. Matamos amigos, rivais, colegas de trabalho, e colegas de turma. As crianças matam crianças, na escola e no recreio. Avós, pais, mães — todos matam e todos eles são alvos a matar”.

Mesmo tendo nascido num país em guerra, matar nunca me foi colocado como última opção e, sendo pai, espero que a minha moral nunca seja posta à prova, pois não sei qual seria minha resposta. Por isso rezo para que não me falte lucidez e que o amor, por mais que me doa, enfim me salve, pois diante do desespero em nada mais vale a pena acreditar, nada mais além do que os versos de Mário de Andrade no seu “Noturno de Belo Horizonte”:

Não prego a guerra nem a paz, eu peço amor!
Eu peço amor em todos os seus beijos…

Quem escreveu esse texto

Kalaf Epalanga

Escreveu Também os brancos sabem dançar (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #56 em fevereiro de 2022.