Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Personagens, irmãs

Como escrever sobre o que é duro sem replicar a dureza, sem voltar a magoar?

01mar2024

Passei a semana a pensar no modo sobre o qual tenho lido posições apaixonadas — como podemos reiterar a violência escrevendo sobre a violência. Olho os meus textos, vejo-me ao espelho. Como escrever sem voltar a magoar, sem sublinhar só a violência? Pensar nisto põe-me em contacto com a dignidade das personagens que encontro nos romances dos outros e nos meus, no respeito que é devido mesmo àqueles que nunca existiram. Como fazer para mostrar sem voltar a magoar? Para revelar sem repetir a moléstia? Nunca pensei tanto como neste inverno como se pode magoar mesmo quem não existe, como mesmo quem não existe nos intima, como podemos fazer sofrer uma personagem.

Esta tarefa difícil, contar o que é duro sem replicar a dureza. É mais fácil descrever assim numa frase, como uma intuição, mesmo como um princípio, uma teoria, do que fazê-lo na prática.

Como ensinar a nossa mão a fazê-lo? E, mais difícil, fazê-lo de forma sensível e funda, sem ceder a deixar tudo pela rama e em escrever para fazer o bem? E poderá esse cuidado, se é que ele merece a pena, se é que é aconselhável, alguma vez conciliar-se com as poéticas da preservação da memória — mostrar para nunca esquecer — como mostrar para nunca esquecer e ainda assim mostrar sem voltar a ferir? Não conheço escola onde se aprenda a fazer isto.

Fui levada de volta, por estes pensamentos, às centenas de domingos em que passeei por feiras da ladra: às fotografias que aí encontrei, de mulheres negras despidas. Comprei-as muitas vezes, movida pelo impulso de as resgatar e de protegê-las, tenho lido sobre as muitas mulheres que, como eu, o fazem e fizeram e que falaram sobre o que as movia.

Fotografias vistas que me levam a fotografias invisíveis.

Olho as moças nuas na banca da feira. Então imagino-nos assim, vendidas por trocos

Não o visto, as polaroids da nossa miséria, a fita da alegria dos anos de ouro, mas as que nunca vi, as que nunca verei, as que não foram tiradas. Quem foram, com quem se pareciam, quem eram, os infotografados? Assim se abre o oceano imaginário, não das caras que foram, mas das que podiam ter sido. Tudo quanto não vejo a respeito de mim e do que sou. O que desconheço acerca do lugar de onde venho. Os círculos de desconhecimento que circundam a origem. O ponto onde os arquivos não chegam, atrás ainda, muito atrás do ponto onde começam. As caras nesse desconhecido jamais vistas. A expressão do olhar nessas caras e os temperamentos que revelam. Tudo quanto nelas foi um dia vida e som. A vastidão invisível dos seus gestos, hábitos, medos. A singularidade e a comunidade perdidas no tempo.

Há dores que me apetece tirar de circulação. Olho as moças nuas na banca da feira, confundo-me. Então imagino-nos assim, vendidas por trocos. E logo penso em esconder nas minhas gavetas limitadas as fotografias perdidas.

Pensar no que mostramos e não mostramos é mais difícil ainda quando pensamos na imaginação. Porque então não estamos só entre o certo e o errado, entre dois modos de ver o mundo, entre o bem e o mal. Estamos também entre nós e nós. Entre o nosso desejo e a nossa força. Entre a pulsão e o nosso limite. Entre o que gostávamos de ser capazes de dizer e o que conseguimos dizer. Entre duas personagens: dum lado, esta, e do outro a outra — tão mais leve, mais livre, mais azul etc.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).