Coluna

Juliana Borges

Perspectiva amefricana

Felizmente, isso não é problema meu

‘Ficção americana’ nos ensina que a absolvição calmante ao tormento branco diante do passado não é da nossa conta

01abr2024 • Atualizado em: 01ago2024 | Edição #80

“Os brancos acham que querem a verdade, mas não querem. Eles só querem se sentir inocentes.” Quando Arthur disse isso a Thelonious “Monk” Ellison, eu ri e assenti. Mas quando o personagem de Jeffrey Wright respondeu instantaneamente: “Felizmente, isso não é problema meu”, eu gargalhei e me senti aliviada. Na cena, Arthur, agente literário interpretado pelo brilhante John Ortiz, resume em poucas palavras o que as pessoas negras sabem durante toda a vida. Já a resposta de Monk nos apresenta outra perspectiva acumulada nestes anos todos: a de que a absolvição calmante ao tormento branco diante do passado não é nosso problema. 

Jeffrey Wright no papel de Thelonious “Monk” Ellison [Reprodução]

Ficção americana é o primeiro longa-metragem de Cord Jefferson, jornalista, roteirista e cineasta que de novato não tem nada. Jefferson trabalhou no jornalismo por uma década, escrevendo para veículos como The New York Times Magazine e usa Today. Depois, dedicou-se à televisão: roteirizou episódios para Master of None e The Good Place; realizou consultorias para Succession; e ganhou um Emmy pelo roteiro de Watchmen. Suas marcas são o humor e a ironia, e isso tudo culmina na sua adaptação do romance Erasure, agora vencedora do Oscar de melhor roteiro adaptado, recebeu as bênçãos do próprio autor, Percival Everett.

Literatura ativista

O enredo de Ficção americana apresenta Thelonious “Monk” Ellison, escritor negro que não consegue encontrar sucesso na indústria literária dominada por brancos e impregnada de uma literatura ativista que, para ele, reafirma estereótipos raciais e limita o que podemos ser. De cara, o nome do personagem chama a atenção por aludir a Thelonious Monk, pianista expoente da música clássica negra; e Ralph Ellison, escritor dos mais importantes da literatura norte-americana. Mas isso não se encerra na superfície. O personagem dialoga diretamente com o protagonista de Homem invisível, romance seminal e incontornável de Ellison, principalmente para quem se afirma amante da literatura clássica. 

O filme apenas engana na apresentação como uma história de “pegada leve”. Na verdade, o que vemos é um personagem submerso em uma crise existencial, buscando sentido para si e o mundo. Isso se torna evidente em um diálogo entre Monk e o irmão, Clifford Ellison, vivido pelo monumental Sterling K. Brown, que afirma: “As pessoas querem te amar. (…) Deixe que te amem por inteiro”. A cena é profunda na mensagem, ao mostrar dois homens negros se permitindo amizade e falando sobre amor, diante de uma cultura que reafirma incessantemente o estereótipo do homem negro violento e negligente.

A questão de fundo do filme de Jefferson, bem como do livro de Everett, é simples, mas de forte densidade: por que querem que o negro seja retratado apenas de maneira brutalizada e alvo de tragédias? E é aí que está a grandeza de Ficção americana e Erasure. Em entrevista de divulgação, Jefferson foi taxativo ao dizer que não se trata de esquecer ou minimizar a experiência de opressão da população negra, e sim de reivindicar um lugar de humanidade a partir de uma vivência plena, que inclui tristeza e, também, felicidade e celebração; que é atravessada por brutalidade, mas produz arte e momentos de afeto e leveza. 

Talvez seja isso que tenha impedido qualquer identificação de minha parte com Sintara Golden, personagem da também talentosa roteirista e produtora Issa Rae. Ali, há uma divergência que, é importante negritar, não é excludente, e sim complementar. Jeffrey Wright e Issa Rae entregam um dos melhores embates no filme, em que se confrontam, de um lado, a perspectiva de Monk, de que somos mais do que violentados ou violentos, e, do outro, a de Golden, de que é preciso dar voz às histórias de vida terríveis da população negra. 

Por que querem que o negro seja retratado apenas de maneira brutalizada e alvo de tragédias?

Até que ponto nosso desejo por representatividade vai nos fazer aceitar alimentar uma indústria — e uma cultura — que vampiriza o pior de nossas experiências para fazer emergir mais complacência do que empatia? Sintara Golden parece não estar preocupada com isso, e Monk sofre com essa limitação. Mas o mais marcante desse diálogo é o jogo argumentativo que faz a escritora responder o colega com a mesma frase que ele havia lançado ao agente literário: “Felizmente, isso não é problema meu”. E Monk parece compreender a perspectiva de Golden, ainda que não concorde com ela.

A despeito do que tenho lido sobre um suposto mau aproveitamento de atrizes como Erika Alexander, no papel de Coraline, e Tracee Ellis Ross, no de Lisa Ellison, irmã de Monk, senti marcas fundamentais da presença dessas personagens na trama. Lisa representa muito o nosso papel construído de cuidadoras, ao passo que Coraline não me pareceu uma personagem auxiliar de Monk, e sim justamente a audiência negra sedenta por se encontrar em obras literárias e a demonstração de que tanto o “mais do que isso” de Monk como a escrita ativista de Golden são importantes. 

Com a entrada de negros na universidade pelas ações afirmativas, lidaremos, aqui no Brasil, cada vez mais com a ampliação de famílias negras de classe média, que intensificarão os embates sobre as complexidades de nossa existência. Como Everett já alertou, não se trata de famílias brancas pintadas de negro, e sim da experiência humana em todas as suas curvas, representada no filme pela troca de olhares entre Monk e um ator negro interpretando um escravizado em um estúdio. Como o filme ensina, não direi que é uma história “necessária” e “visceral”, como faz a crítica rasa sobre a produção artística negra. O que celebro é ter me visto em Monk, como estudioso de literatura grega, e em Lisa, como a mulher negra que cuida até que se esvai, ainda que com humor. E, fundamentalmente, por ter me reencontrado com Percival Everett e sua ferrenha fé na arte. 

Quem escreveu esse texto

Juliana Borges

Escritora e livreira

Matéria publicada na edição impressa #80 em abril de 2024.

Peraí. Esquecemos de perguntar o seu nome.

Crie a sua conta gratuita na Quatro Cinco Um ou faça log-in para continuar a ler este e outros textos.

Ou então assine, ganhe acesso integral ao site e ao Clube de Benefícios 451 e contribua com o jornalismo de livros independente e sem fins lucrativos.