Djaimilia Pereira de Almeida
Onde queremos viver
Exílio contínuo
O que será que fica de nós num lugar quando o abandonamos?
25jan2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #78Em vez de desenraizar, tirar da terra, arrancar pela raiz — amputar. O exílio é uma disciplina de abandono e renascimento, de morte e ressurreição, questão de buscar a continuidade depois da fractura. O que será que fica de nós num lugar quando o abandonamos? Ludwig Wittgenstein escreveu que “o corpo humano é a melhor imagem da alma humana”. A que corpo se refere a sua afirmação? E a alma humana: quantas vezes pode morrer e renascer? A natureza e o colonialismo oferecem-nos inúmeros exemplos de transplantações, próteses, toda a espécie de sutura. Quantas árvores centenárias terão sido transportadas em navios a caminho dos jardins botânicos do Ocidente, mesmo que dentro de um envelope de sementes? Não é o mesmo com o nosso corpo e alma? Talvez tenhamos de começar por rever a ideia de que se nasce uma única vez e se morre uma única vez — a vida humana é plena de começos e conclusões provisórias, prefácios e finais encenados. Prévia ao remedeio, à sutura do golpe, porém, fixo-me no corte, e no que resta da alma e do corpo, uma vez cortados.
A migração pode ser a que vai de um a outro estágio da vida, de uma a outra fase
A pouco e pouco, encontro novas metáforas. Substituir árvore, terra, raiz por corpo, membros, corte. Se o ocidente dividiu África a estilete, o corte é um tropo flexível da dominação do homem pelo homem, a faca, uma metonímia da subjugação pela qual um território é alienado das suas fronteiras e anexado noutro. África é, nesta história, um pedaço de papel chamado mapa na mão de costureiras avarentas, mas este é apenas o começo da conversa. Referia-me, no começo, ao exílio enquanto corte, à afinidade entre a pertença ao lugar onde nascemos e a união que os tecidos e ossos do nosso corpo mantêm entre si, ao abandono da própria terra enquanto medida de uma amputação espiritual.
Será que, antes do exílio, houve um corpo inteiro, aquele que é sinalizado pela unidade simbólica entre o nosso interior e a pertença ao lugar onde nascemos, uma hipotética unidade prestes a ser arrasada na continuidade da vida?
Atento nesta continuidade: a que liga o nosso corpo ao nosso espírito. E depois outra: a que liga as formas sucessivas que essa continuidade toma, à medida que nos deslocamos no tempo e no espaço. Não é preciso abraçar um apelo visceral a qualquer noção de pertença para identificarmos algumas variantes que condicionam aquela continuidade. Somos recebidos no mundo num espaço-tempo, em certas condições e circunstâncias. A contingência da equação da hospitalidade do mundo à nossa chegada condiciona-nos desde o primeiro instante. A vida é quase a gargalhada irónica acerca das aspirações ingénuas daquela continuidade, ou acerca das condições e circunstâncias que rodeiam aquilo a que chamei uma equação de hospitalidade. O destino talvez seja apenas o ecoar dessa gargalhada enquanto nos tentamos desenvencilhar das pontas do novelo. Se calhar, nesta história de violência, Deus é só uma máquina de gargalhadas eléctrica e nós, humanos, os protagonistas tolos da soap opera datada.
O exílio não se esgota numa deslocação no espaço, do lugar onde nascemos para outro. Se é um movimento migratório, a migração pode ser a que vai de um a outro estágio da vida, de uma a outra fase. Não um exílio geográfico, mas espiritual: de uma a outra idade, a outra era, a outro ciclo da nossa aventura. Envelhecemos, mudamos, renascemos. Por dentro, todos somos migrantes.
Matéria publicada na edição impressa #78 em dezembro de 2023.
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