Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Exílio contínuo

O que será que fica de nós num lugar quando o abandonamos?

25jan2024 • 20mar2024 | Edição #78

Em vez de desenraizar, tirar da terra, arrancar pela raiz — amputar. O exílio é uma disciplina de abandono e renascimento, de morte e ressurreição, questão de buscar a continuidade depois da fractura. O que será que fica de nós num lugar quando o abandonamos? Ludwig Wittgenstein escreveu que “o corpo humano é a melhor imagem da alma humana”. A que corpo se refere a sua afirmação? E a alma humana: quantas vezes pode morrer e renascer? A natureza e o colonialismo oferecem-nos inúmeros exemplos de transplantações, próteses, toda a espécie de sutura. Quantas árvores centenárias terão sido transportadas em navios a caminho dos jardins botânicos do Ocidente, mesmo que dentro de um envelope de sementes? Não é o mesmo com o nosso corpo e alma? Talvez tenhamos de começar por rever a ideia de que se nasce uma única vez e se morre uma única vez — a vida humana é plena de começos e conclusões provisórias, prefácios e finais encenados. Prévia ao remedeio, à sutura do golpe, porém, fixo-me no corte, e no que resta da alma e do corpo, uma vez cortados.

A migração pode ser a que vai de um a outro estágio da vida, de uma a outra fase

A pouco e pouco, encontro novas metáforas. Substituir árvore, terra, raiz por corpo, membros, corte. Se o ocidente dividiu África a estilete, o corte é um tropo flexível da dominação do homem pelo homem, a faca, uma metonímia da subjugação pela qual um território é alienado das suas fronteiras e anexado noutro. África é, nesta história, um pedaço de papel chamado mapa na mão de costureiras avarentas, mas este é apenas o começo da conversa. Referia-me, no começo, ao exílio enquanto corte, à afinidade entre a pertença ao lugar onde nascemos e a união que os tecidos e ossos do nosso corpo mantêm entre si, ao abandono da própria terra enquanto medida de uma amputação espiritual.

Será que, antes do exílio, houve um corpo inteiro, aquele que é sinalizado pela unidade simbólica entre o nosso interior e a pertença ao lugar onde nascemos, uma hipotética unidade prestes a ser arrasada na continuidade da vida?

Atento nesta continuidade: a que liga o nosso corpo ao nosso espírito. E depois outra: a que liga as formas sucessivas que essa continuidade toma, à medida que nos deslocamos no tempo e no espaço. Não é preciso abraçar um apelo visceral a qualquer noção de pertença para identificarmos algumas variantes que condicionam aquela continuidade. Somos recebidos no mundo num espaço-tempo, em certas condições e circunstâncias. A contingência da equação da hospitalidade do mundo à nossa chegada condiciona-nos desde o primeiro instante. A vida é quase a gargalhada irónica acerca das aspirações ingénuas daquela continuidade, ou acerca das condições e circunstâncias que rodeiam aquilo a que chamei uma equação de hospitalidade. O destino talvez seja apenas o ecoar dessa gargalhada enquanto nos tentamos desenvencilhar das pontas do novelo. Se calhar, nesta história de violência, Deus é só uma máquina de gargalhadas eléctrica e nós, humanos, os protagonistas tolos da soap opera datada.

O exílio não se esgota numa deslocação no espaço, do lugar onde nascemos para outro. Se é um movimento migratório, a migração pode ser a que vai de um a outro estágio da vida, de uma a outra fase. Não um exílio geográfico, mas espiritual: de uma a outra idade, a outra era, a outro ciclo da nossa aventura. Envelhecemos, mudamos, renascemos. Por dentro, todos somos migrantes.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #78 em dezembro de 2023.