Coluna

Ondjaki

Deslembramentos

lembro-me de uma casa: no Maculusso

uma casa é um lugar onde o corpo e os sentires sentem como casa. não são as paredes e o quintal. são as janelas das paredes e as pessoas que aparecem no quintal

23jan2024 • 20mar2024 | Edição #78

como poderia eu falar dessa casa — sem chegar às cores que a pintavam, sem falar de flores, de água, de pombos e cágados, sem falar de um mundo enorme que ali circulava em rodopio humano e pitoresca ternura?

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nunca soube o nome da rua, nem o número, mas creio que desde muito cedo poderia descrever os materiais e as temperaturas daquele portão. o mesmo portão onde as mãos da tia rosa me encheriam a cabeça de sono e alumbramento.

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(“este?… este é terrível!”) a voz dela parecia o mar de manhã cedo a trazer calmaria aos pássaros. o colo dela era, creio, do tamanho do mundo. como tantas outras mulheres, ela era várias e muitas. mãe dos filhos dela. mãe de mim também.

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(“Dalinho… vai abrir a porta. é o Mogofores!”) a voz do tio Chico, marido da tia Rosa, primo da minha mãe, era a mais certeira em acertar quem estava a tocar à porta pela combinação usada do botão da campainha. o Mogofores, o Vaz, o senhor Osório, o Hugo, o João Valente, o mudo Zeca da Raiz. ele sabia quem viria. mas eu creio que vinham todos pela cerveja mais bem gelada de Luanda. o tio Chico, como se dizia antigamente, “era nervoso”: isso quer dizer que era um profissional naquilo que entendia fazer bem: instalou duas câmaras frigoríficas no quintal. uma para frio tipo geleira. outra tipo arca de congelar o peixe e a carne. dentro ficavam os barris de cerveja (pelo menos três) e cá fora, na parede, vivia aquela pequena torneira de “tirar o fino” (fino é chope).

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nesse mesmo portão onde os cheiros das mãos da tia Rosa me encheriam a cabeça de sono e alumbramento, eu recebia, junto a ela, junto com ela, as informações do bairro, as notícias da cidade, os assaltos da rua de trás, pequenas notícias inventadas sobre a guerra. quem teria engravidado. que marido chegava tarde à casa. os próximos funerais. o horário de a luz vir a faltar. promessas de melhor fornecimento da água canalizada. os preços dos cabeleireiros. um mundo. na rua deles. no Maculusso.

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nunca soube o nome da rua, nem o número, mas creio que desde muito cedo senti que aquela era uma das minhas casas. uma casa é um lugar onde o corpo e os sentires sentem como casa. não são as paredes e o quintal. são as janelas das paredes e as pessoas que aparecem no quintal. uma casa é um lugar onde se adormece sem temor e se desperta perto do mundo que nos rodeia. nunca soube o nome daquela rua. nunca precisei de saber a localização exacta para que aquela casa coubesse dentro de mim.

o colo dela era, creio, do tamanho do mundo. como tantas outras mulheres, ela era várias e muitas

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como poderia eu falar dessa casa sem chegar às pessoas que a pintaram, sem falar (das duas gotas) da planta verde-escura que me livrou da dor de ouvido aos sete anos, dos pombos ao fim da tarde e do súbito desaparecimento dos dois cágados que ficavam no minúsculo jardim da frente?, sem falar de um circo enorme que ali se instalava em corrupio humano e amena meiguice? quem eram aqueles actores e actrizes? quem os contratou? que refeições impossíveis eram aquelas? como conseguiam todos compreender e fazer falar o mudo Zeca da Raiz? porquê que a Dona Vicência agrediu o senhor Osório quando ele foi à casa dela e a chamou de “Vicência”?, para onde ia o tio Chico quando saía de casa bem vestido a cantarolar ironicamente “Não venhas tarde…/ dizes-me tu com carinho/ sem nunca fazer alarde/ do que me pedes baixinho”?

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nunca soube entender o vazio daquele dia. o tão repentino instante onde do calor da cidade me entrou um repentino frio adentro. não posso dizer que tenha sido dor. mas posso lembrar que pesava mais do que um intenso pressentimento de solidão.

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no enterro do tio Chico, a tia Rosa, entre os quatro filhos, escolheu o meu braço para se apoiar. isso imaginei eu no enquanto-quente da cerimónia. mas talvez fosse algo maior: ela sabia que aquilo que murmurasse ao meu ouvido (no exacto momento em que atiravam terra sobre o caixão) haveria de ser memorizado por mim. ela sabia que no dia que eu escrevesse sobre isso, haveria de resistir ao ímpeto literário de brilhar como um breve pirilampsesto. antes, para ser justo com a memória, eu teria de ser coerente para com os mais-velhos. escrever e tentar ser, aquilo que, sem saber, ela e outras mulheres me haviam preparado para ser e escrever.

Quem escreveu esse texto

Ondjaki

Poeta e escritor angolano, publicou Materiais para confecção de um espanador de tristezas (Pallas).

Matéria publicada na edição impressa #78 em dezembro de 2023.