Ondjaki
Deslembramentos
a metaestável ‘Franisca’
(metaestável: adjetivo; física: capaz de perder a estabilidade através de pequenas perturbações. física quântica: que possui longo tempo de decaimento.)
26fev2024 | Edição #79*
houve um dia em que a tarde estava bonita na varanda da casa do tio Joaquim e da tia Tó. a avó Xica já tinha bebido muitas cervejas. em vez de ficar zangada, a tia Tó ficou triste. a avó Xica teve pena. pediu uma folha de papel e uma caneta. eu que estudava na parte de dentro fui a correr entregar os materiais. a tia Tó ficou muito surpreendida a olhar para as mãos da avó Xica. eu trouxe uma capa grossa para a avó apoiar o papel. ficámos de testemunhas do precioso momento: a avó Xica começou a desenhar o nome dela como na quarta classe: Francisca. na mais que perfeita letra dela.
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mas aquilo, é preciso explicar: era um ensaio. e respirámos fundo. há várias semanas que o filho da Avó Chica tinha dado esta missão à tia Tó: a mãe (dele) teria que ser capaz de escrever (correctamente) o nome, ao vivo e a cores, no banco. pelo seu próprio punho e vontade.
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“vai buscar uma cerveja bem gelada que os médicos já me disseram que faz mal beber cerveja quente”, a avó falou, e eu obedeci. eu não gostava do cheiro da cerveja mas apreciava ver como acontecia o milagre da espuma. de onde vinha aquela espuma? aliás, como é que aparecem as espumas? as ondas também inventam espuma.
ou talvez seja o mar. (anos mais tarde eu iria ler: “existem duas classificações de espuma do mar definidas pela estabilidade ou resistência. há a espuma instável ou transitória, que dura apenas alguns segundos. a segunda é a espuma metaestável”.)
a literatura é feita de pequenas reminiscências, de fotografias inventadas ou emprestadas
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a tia Tó ficou na varanda da casa dela a olhar o fim do sol naquele dia sobre o mar da baía de Luanda e ninguém foi lá falar com ela. a avó Xica bebeu a cerveja dela. lá dentro, a tia Encarnação começou a preparar o corpo para os movimentos silenciosos que faria durante toda a madrugada. ela, Encarnação, nunca viria a saber mas a Djamila já lhe atribuíra um nome que a literatura não pode ignorar: “a aranha”.
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conto estes episódios porque me lembro, muitas vezes ao longo da vida, que a literatura é feita de pequenas memórias, de fotografias nossas ou emprestadas, de grandes lances literários que muitas vezes não começam com os escritores. é como uma jogada de futebol ou de basket. trata-se, enfim, de uma grande “assistência”.
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muitas semanas antes, (o tio) António, o “Santos Pêra” ou “O Lobo”, filho da Avó Chica, tinha requisitado a paciência e os serviços da tia Tó para que a sua mãe fosse capaz de assinar correctamente um documento do e no banco. creio eu que se tratava de uma herança nada volumosa mas sim carregada de simbolismo afectivo.
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o que aconteceu nessa tarde, o que a Avó Chica escreveu na hora de rubricar “Francisca”, a reação quase rápida e divertida do homem do banco querendo ser vitorioso em cima do erro da velha, a reação do “Lobo”, o riso do tio Chico, as lágrimas de riso da minha mãe, o desespero da tia Tó, o susto das crianças, o nariz a sangrar do homem do banco e o modo como o cortejo se deslocou do banco para um bar, no Maculusso, a fim de beber para esquecer aquilo que são os grandes pequenos episódios que as crianças guardam, como diria Paula Tavares, para mais tarde recordar e contar. mas o que sucedeu naquela tarde, no banco, não cabe nesta crónica. mas foi uma grande assistência. ou melhor, foi um golaço da avó Chica.
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de noite, nessa noite, a avó Chica não voltou à casa da tia Tó. nós, sim. creio que num canto da varanda estava a Naima a ler um livro de filosofia. a minha prima Djamila a preparar o riso estridente dela para me vir murmurar que “a aranha tinha começado a sua movimentação nocturna”. o tio Joaquim ouvia pelo rádio notícias da guerra de Angola e dos sofrimentos da Palestina. a tia Tó olhava para um longe perto do mar, por entre o vento dos coqueiros, numa distância que trazia quase-medo. eu desviei o olhar.
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a literatura é feita de pequenas reminiscências, de fotografias inventadas ou emprestadas, de grandes preciosidades que muitas vezes não começam nos olhos ou nas mãos dos escritores. mas às vezes há um olhar perto. uma espécie de mansidão fingida e invisível. já dizia Guimarães Rosa: quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo. mas a avó Chica, na teimosia dos seus melhores dias, deu-nos a ver mais de um pequeno milagre.
Matéria publicada na edição impressa #79 em março de 2024.