Coluna

Ondjaki

Deslembramentos

a morte e o paraíso

Quis escrever-lhe para dizer que a sua literatura, o seu sangue, é tão sentido e verdadeiro que chega a intimidar. Mas a verdade assusta, não, Clarice?

26mar2024
Paisagem, 2021. Fotografia de Jordi Burch

Cara Clarice,

Há duas alturas, dois momentos meus, em que me lembro muito de si e invoco lembranças suas de conversas que não tivemos ou olhares que nunca cruzámos. Surge dentro da alma uma música secreta que nada tem de clássica e que também não conheço, e, assim, começa uma extensa, palpável tristeza nestas palavras que lhe vou dizer.

Ocorre-me com sinceridade que é espantoso que poucas, raríssimas palavras suas tenham sido redigidas sem a consequência de uma forte unicidade; palavras depois agrupadas na forma de parágrafo e, mais tarde, de livro, até chegar aos seus leitores como um todo brutalmente mágico, densamente humano. E digo mágico mas quero associar à dimensão mágica dos seus dizeres o dom da simplicidade. Digo denso e humano, do seu comportamento nas letras, porque você foi uma das mais poderosas tradutoras do corpo interno das pessoas para uma forma literária onde pudéssemos, a par de si, ver o que você viu. Descrever veias e ritmos de sangues seria somente função médica se você não os tivesse contrariado, aos dissecadores de corpos, dando-nos a pesar com o coração e com as mãos e com as veias os sangues mais íntimos de cada um de nós, viventes, leitores, seres sensíveis.

Paisagem, 2021. Fotografia de Jordi Burch

Ocorre-me ainda (e como saberei?) que a tristeza constituía para si um labirinto, o paredão onde você mesma se encostava, triste, e mandava homens imaginários e dolorosos dispararem certeiramente. Sangrando — sim, sangrando o seu sangue de Clarice, você se descobria, punha a descoberto o personagem, misturava-se com ele e morria um pouco. Bem sei (ou julgo saber) que respirar para si não era acto vulgar; talvez fardo, talvez destino aceite, talvez uma fraca convicção na espera de um equilíbrio que, apesar dos paredões, nunca chegou a chegar. E no entanto, você respirava e escrevia, respirava e escrevia.

Da sua caneta brotaram caminhos só seus. Em frases curtas você atingiu, mais vezes que outros, mais vezes que as possíveis, o que se considera “a verdade”; e dizem que só sonhando com os deuses se descobre isso. Não é, como lhe acontecia a si, acordada que se tem essas revelações. Não há por onde fugir: há algo de medonhamente humano no olhar que você construiu e ninguém está já a salvo da verdade. Uma vez ouvi-a escrever assim: era uma noite muito bonita: parecia com o mundo. Logo depois disse mais isto: o humano é só. E penso: quantos nomes deu você à solidão? Quantas vezes lhe foi bater à porta para acalmar dúvidas? Quantas vezes preferiu o brilho das estrelas na noite ao brilho do sol nos dias?

Há dois momentos, dizia-lhe eu, em que me lembro muito de si: quando choro, quando choro sob peso do acto de existir. E quando vejo lagos. Lagos grandes fazem-me pensar em si: vastidão, calmaria, rugosidade quando chove, a liberdade dos peixes e o facto de a água não poder correr, estando assim condenada a ser, ali, água-de-lago. Depois volto às lágrimas, e quando penso em morrer, ou na altura própria de morrer que é o acto de espera, o viver, também penso em si. (Foi a morte o seu paraíso?…)

Telefono a uma amiga para que me confirme que você se suicidou; partilhamos ambos essa impressão e ao telefonar à minha amiga pergunto: a Clarice, ela suicidou-se, não foi? E a sua morte, a vozes de hoje, está numa conversa telefónica entre eu e a minha amiga. Logo, mais à noitinha, porém antes da madrugada, vou ligar a essa amiga para saber notícias da sua morte. Ela disse-me, há pouco, que você era uma mulher lindíssima. (Se isso interessa? Claro que não. Mas a minha amiga urdiu a palavra de um jeito tão clariciano…)

Hoje sentei-me aqui e fiz um esforço para começar esta carta mesmo sabendo que não lha posso entregar. Fiz e faço isto porque gosto de escrever cartas e porque já estava para lhe escrever uma carta há muito tempo e assim peço-lhe, se puder, que venha espreitar esta carta. É para si.

Quis também escrever-lhe porque pensei que algum véu das minhas lágrimas se dissiparia ao falar assim consigo. E quis, por fim, escrever-lhe para dizer que a sua literatura, o seu sangue, é tão sentido e verdadeiro (como dizem, em delírio, os deuses) que chega a intimidar. Mas a verdade assusta, não, Clarice?

Gostaria de ter conhecido a sua mão e o seu olhar, mas penso que também isso deve estar contido na sua obra

Sabe, sendo verdadeiro como me havia proposto, teria que lhe falar também do que é morrer para mim, e dizer-lhe de que modo e com que intensidade isso é, no fundo, o isto de viver, sendo que mesmo hoje, quando telefonar à minha amiga, não sei como irei reagir ao que ela tiver para me contar. Penso que terei já ultrapassado o desejo de considerar a hipótese do suicídio, mas nós não controlamos o peso dos dias, nem o peso dos dias em nós, nem a insignificância com que vestimos os dias de vez em quando. Sabe, Clarice, é muito difícil sermos os guardiães de nós mesmos, pois não raro descuidamos a tarefa e perdemos com certa facilidade a noção do perigo.

Estive num bosque que nunca mais acaba e quis conhecê-lo. Hoje tenho que sorrir ao pensar nisso, pois os minotauros, no fundo, são o que são, graças aos labirintos. (Sentiu isso, Clarice? Alguma vez abençoou a sua tristeza?)

(…) Foi bom ter telefonado à minha amiga (e já entendi que não houve suicídio). Vou respeitar a dureza das suas palavras, o que de verdade elas emanam, a transcendência dos tempos que você esculpiu, até os seus segredos vou poupar — ao longo dos anos os decifrarei; também para que me sobrem coisas valiosas até ao fim dos meus dias.

Vou já parar. Quero só deixar-lhe a palavra abraço, a palavra toque, a palavra poesia. Gostaria de ter conhecido a sua mão e o seu olhar, mas penso que também isso deve estar contido na sua obra. Será talvez uma questão de busca e aprumada acuidade.

Cara Clarice: para que lugar encantado devo enviar esta carta?

Quem escreveu esse texto

Ondjaki

Poeta e escritor angolano, publicou Materiais para confecção de um espanador de tristezas (Pallas).