Coluna

Ondjaki

Deslembramentos

o todo e as partes dançantes

o velho ainda me visita nos pensamentos da minha imaginação. e eu ainda sou esse que pode descobrir fascínio na lentidão secreta de um movimento mínimo

01maio2024 • Atualizado em: 13maio2024

há quanto tempo foi que estive nesse lugar tão dentro, onde o corpo aprende (a cada curto instante) coisas que são incríveis por serem novas

e que em sendo novas

descerram tão pacata aprendizagem…..?

*

ali se reaprendia (entendi mais tarde) a respirar.

a expandir a capacidade de entender que se respira mais além do pulmão, mais além do movimento óbvio, mais além do diafragma. respirar é, passa a ser, a harmonia de entender a respiração como um todo formado por partes que dançam.

postura. contenção de velocidade. e ritmo.

adaptação entre copiar o movimento e aprender a fazer o movimento sem (mais) copiar.

*

talvez tenha sido o único período da minha vida onde me foi tão importante e até prazeroso, voltar a “trabalhar com o corpo para aprender”. creio que tinha passado anos e anos num ritmo escolar onde tudo o que aprendia me chegava mentalmente. anos e anos. sem me lembrar do corpo que pode “aprender”. e, muito repentinamente, muito lentamente, de novo uma intensa, diversificada, labiríntica, aprendizagem com o corpo.

as mãos. o ritmo de deslocação do cotovelo, ombro, pulso, punho, dedos. e a ponta dos dedos resistindo ao ar contrário ao movimento.

do pouco que ensinei, insisti no rigor que me foi passado: o devagar é devagar; o que é assim, assim é

as pernas. a constante busca da posição certa para a dobradura dos joelhos. os músculos que aquecem. os músculos que ardem. a lenta deslocação do peso, e a instintiva redefinição dos pontos cardeais pelos quais se pode o corpo orientar, traçar e projectar.

reaprender a caminhar. ou como dizia meu instrutor josé carlos: aprender a andar no taiji. era aprender, de novo, isso de andar. perto do taiji da turma. dentro do taiji quan de cada um.

as novas modalidades de respirar. o calor no centro das mãos. o quente respirar no inverno de uma Lisboa nocturna. o cheiro das plantas respirado na profunda inspiração da prática. os longos exercícios de qi gong. o novo modo de olhar o ritmo do mundo.

eram, portanto, novas estreias no reino da sensibilidade.

*

como em outros começos, exagerava nos rigores do aprender e do praticar. demarcava, com linhas demasiado perfeccionistas, o tracejado cardeal possível para os pés, as distâncias, os ponto de partida e de chegada da forma.

aprendia a coreografia. cheguei a exercitar variantes criadas por mim, alterando o desenho, experimentando ritmos e respirações não constantes. cada vez me distanciava mais do qi gong para me consentir experimentar, em tempo e desenho, a flexibilidade da forma que eu, sozinho, vivenciava. ensinei pouco a poucos. do pouco que ensinei, insisti no rigor que me foi passado nas primeiras aulas: o devagar é devagar; o que é assim, assim é.

fui, aos poucos, individualizando a prática. não estou certo que seja isso o adequado, mas foi o que a mim sucedeu. mantenho intacta a primeira forma que aprendi. pratico-a na versão intacta e nas versões que o corpo dança.

do resto (da prática individual) não cabe aqui expôr.

*

alguns anos se passaram. exercitei uma prática (física) errática, dispersa, nada constante. uma má prática, portanto (no mundo do taiji quan e das artes marciais internas). mas foi no lado interno (na respiração e nas suposições mentais) que não cessei a prática. aos poucos tentava regressar. mais solto. adequando as formas improvisadas ao corpo e à respiração possíveis. experimentei alguns momentos de elevada sincronicidade entre corpo, respiração e mente. mas há resultados que, creio, não poderei alcançar sozinho. o tempo dirá. o destino também.

*

enquanto isso, sorrio por dentro. espero. como quem espera um poema. como quem tenta decifrar pressentimentos. o velho ainda me visita nos pensamentos da minha imaginação. e eu ainda sou esse que pode descobrir fascínio na lentidão secreta de um movimento mínimo.

entretanto, espero.

espero.

Quem escreveu esse texto

Ondjaki

Poeta e escritor angolano, publicou Materiais para confecção de um espanador de tristezas (Pallas).

Peraí. Esquecemos de perguntar o seu nome.

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