Coluna

Ondjaki

Deslembramentos

a primeira vez que fui a Minas

até hoje há quem ainda me tente perguntar: como foi isso? de certo modo, foi simples. e sucedeu como no começo do mundo: com a poesia

19abr2023 | Edição #69

certa ocasião fui desde Luanda até Caxambu. até hoje há quem ainda me tente perguntar: como foi isso? de certo modo, foi simples. e sucedeu como no começo do mundo: com a poesia.

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foi nos começos da internet. até quase antes. uma chamada num blog: uma antologia bilingue de poesia com um tema abrangente: água. e que tinha associado um “festival”.

fui buscar às gavetas de poesia encaixotada tudo o que pudesse meter água. de chuva ou chuvisco, maresia ou sonho. oito poemas. um título: palavras desaguadas. li e reli, corrigi e embelezei até onde o rigor me permitia. hesitava, respirava fundo. tinha que enviar. e ouvir talvez um não.

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só que não. foi um redondo “sim”. talvez um dos “sins” mais simples e festivos que recebi. e vinha em língua do uruguay. caramba!, eu já começava a receber emails altamente internacionais, fora da margem da língua portuguesa. “que él séñor nó sé quié y que tal” que em língua uruguaya se escrevia com y, u-la-la!, eu fiz logo “reply”. e disse que sim, “obrigado; sou eu”.

a cachaça me ajudava a pensar que (eu) não tinha medo. mas o medo é mais leve que o silêncio

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os meus poemas tinham sido selecionados para “constar” da antologia água no terceiro milénio. e havia notícias em anexo: a antologia era parte de um grande festival numa terra que atendia pelo nome de Caxambu, “como disse?”, Caxambu, éme gê, Minas Gerais, e você está convidado.

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como diria uma amiga minha: eita porra!, então eu mando oito poemas totalmente desaguados e sou “selecionado” e ainda sou “convidado”? mil personagens de telenovelas brasileiras me vinham à cabeça. eu mesmo talvez estivesse a cair na ilusão de estar dentro ou perto de uma telenovela dessas tipo tieta ou roque santeiro.

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era de facto verdade extra telenovela: havia o festival. era sobre a água. Caxambu existia. e claro, Minas Gerais. e o Brasil também.

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um apoio familiar e alguns dólares que eu tinha guardado serviram para inscrever os poemas desaguados e pensar em ir ao Brasil. foi assim que me despedi de Luanda: para ir até Caxambu. “com tanto lugar para ir? Rio de Janeiro? São Paulo? até mesmo Recife ou Salvador. cuidado.” e eu sem saber bem o que dizer. “ainda vou a Salvador, sim.”, tentei remendar. “mas depois vais para… como é que se chama? Xambucú?!”

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era Caxambu. gostei do nome desde sempre. o voo fez Luanda-Rio de Janeiro. depois um táxi até à rodoviária e depois dali um ónibus. cheguei à dita cidade eram quase duas da manhã. madrugada cerrada. um certo nevoeiro. algum frio. e um vazio nas ruas. o motorista abriu a porta e disse com voz seca: “se é Caxambu, é aqui.” saí apalpando a noite e o nevoeiro.

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a primeira coisa que vi foi uma encruzilhada. aquilo, aliado às memórias dos lobisomens de telenovela e literatura, não era animador. uma débil luz amarela ao longe guiou-me a um bar. três senhores de incerta idade faziam do silêncio uma ocupação extensa. estavam confortáveis. “boa noite”, entrei. “boa noite”, disse um de cada vez. “está chegando?”, o do balcão notou. “e já cheguei; posso comer algo?”, ainda tentei. “isso já não. mas beba conosco uma água especial.” sorriu. eu também. bebemos juntos mas separados até perto das quatro da madrugada. contavam estórias de lobisomens. tudo em estranha calmaria. um dos três quase não falava. respirava de modo denso. a cachaça me ajudava a pensar que (eu) não tinha medo. mas o medo é mais leve que o silêncio. chega pela pele de dentro.

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no dia seguinte, Caxambu era um lugar radioso e cheio de gentes artísticas, um enorme parque com águas que curavam males do corpo e da alma. uma equipa fantástica recebeu-me durante aquele que foi o “primeiro festival da água no terceiro milénio”. era de verdade a antologia. os livros estavam prontos e bilíngues. novos amigos. novos rostos. pela manhã, antes do parque abrir eu dirigia-me ao seu interior, caminhava. esperava. escolhia um lugar onde a energia me parecia propícia para “fazer” tai chi.

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esse parque principal de Caxambu é um lugar mágico. a vinte e nove de novembro do ano de 2000 eu estava lá sentado. um senhor falou comigo e disse ser o prefeito. eu raras vezes duvido das estórias, prefiro embarcar nelas sem julgamento de veracidade. mas havia alguém mais que, ao longe, nos observava. por três dias.

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no quarto dia, o homem magrinho que olhava de longe veio falar-me. cordial, reconheceu os movimentos que eu fazia. tai chi chuan, também conhecida como tai ji quan, uma antiga arte marcial chinesa. “o senhor também é praticante?”, perguntei. apertou-me a mão com a firmeza da sua magra mão. “não, mas sou apreciador. também trabalho com meridianos”, sentou-se perto. perguntou de onde eu era, e não ficou completamente espantado por eu dizer que era angolano. “Caxambu é uma lugar especial e de encontros…”, deixou no ar. “mas você disse que trabalha com meridianos?”, voltei ao assunto. “usa agulhas?”. ele confirmou.

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“acupuntura?”, foi a minha primeira tentativa. “mas não em pessoas”, ripostou com um olhar mais misterioso. “em animais?”, tentei. “não. na terra. faço acupuntura ao nosso planeta.” o acupunturista do planeta terra não parou mais de falar. pediu-me que fossemos caminhar.

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mostrou-me umas pedras verticais, 50 cm ficavam visíveis, 70 cm enterrados no corpo deste nosso planeta. desenhos complexos esculpidos na parte visível. o acupunturista explicou sem reservas: “aprendi com um alemão que recebeu os ensinamentos de extraterrestres. temos os manuais, e vamos colocando as pedras conforme as necessidades do planeta”. seguimos o passeio. bebíamos água nas fontes que encontrávamos pelo caminho. 

a dada altura o acupunturista fez uma paragem brusca como se farejasse algo. entrou por um atalho de plantas. fez-me sinal para que o seguisse. “fique aqui e abra os braços”, propôs. era uma posição parecida com “a postura da árvore”, uma posição fixa que se usa no chi kung para respirar e acumular energia. “não sente nada?”, perguntou. “concentre-se”. fiz o que podia e o que sabia. sentia-me confortável e a respirar ar puro. “este é um dos meridianos mais pesados do planeta terra. vem lá de Bogotá e passa exactamente aqui neste ponto.”

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no dia seguinte pediu-me que o acompanhasse a São Lourenço. lá estavam mais pedras e os respectivos símbolos. eram desenhos realmente estranhos. embora “estranho” seja apenas aquilo que não se reconhece como familiar. e, juro, de algum modo, aqueles desenhos não me eram totalmente desconhecidos. pus-me a remexer no poço da minha memória.

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saí de Caxambu e fui a Salvador. pela primeira vez. no voo apanhei um susto. tinha na mão um livro que o acupunturista me tinha oferecido: a autoria, como se diz em Angola, era de “ambos os dois” (do alemão e dele próprio). além dos textos, havia fotos dos símbolos inscritos nas pedras. aqueles desenhos eram idênticos aos que, anos antes, eu tinha visto numa espécie de manual de sobrevivência do fim do mundo. um primo meu, em Londres, conheceu uma senhora que procurava alguém com conhecimentos de informática. esse meu primo era formado em informática. foi convocado para uma reunião secreta: havia naves espaciais preparadas em alguns lugares do planeta para uma fuga caso o fim do mundo chegasse no ano 2000. só gente muito entendida em computadores poderia pilotar tal nave. ele tinha sido escolhido. um dos manuais vinha com esses símbolos na capa.

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quando cheguei a Salvador fui recebido pelo Bito, um querido amigo dos meus pais. “tu estás a vir de onde?”, quis saber. “Caxambu”, respondi. “esses gajos são perigosos…”, o Bito disse com ar misterioso, “são muito hidráulicos”. ao almoço contei alguns episódios do festival. ao que o Bito disse muito sério: “aqui, sim, há estórias verdadeiras. vou te apresentar o Branco, um homem que já por três vezes escapou de um lobisomen”. eu sorri.

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chegar a Salvador, depois de ter saído de Caxambu, depois ter saído de Luanda, foi algo, no mínimo, estranho. “aqui vais encontrar gente conhecida de Luanda”, avisava o Bito. “como assim?!”, quis entender. “os brasileiros daqui são parecidos com as pessoas de Luanda”, ele prometia. 

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olhei para a cidade e para as pessoas: fazia Luanda em Salvador da Bahia. mas isso é outra estória.

Quem escreveu esse texto

Ondjaki

Poeta e escritor angolano, publicou Materiais para confecção de um espanador de tristezas (Pallas).

Matéria publicada na edição impressa #69 em abril de 2023.