
Crítica Cultural,
Torquatransa
‘Transa’ ao vivo lembra Torquato Neto e a importância das transas que mantêm aceso o desejo de futuro
24ago2023 | Edição #73Quatro dias depois de assistir ao show apoteótico (no palco) e apocalíptico (na plateia enlameada) com que Caetano Veloso celebrou os cinquenta anos de Transa no Rio de Janeiro, parti para Teresina. Lá, o animadíssimo Salão do Livro do Piauí, em sua 21a edição, dedicou uma sessão a Torquato Neto, poeta-monumento da cidade, uma das poucas em que um nome da cultura marginal, filho da terra, batiza solenemente escola e teatro. Para me preparar, voltei a meu trabalho de organizador dos dois volumes de Torquatália que, publicados em 2004, reúnem parte expressiva do que escreveu o dissidente vocacional da Tropicália.
Quanto mais pensava em Torquato, mais pensava em Transa, o show. Quanto mais ouvia Transa, o disco, mais ouvia nele Torquato como o fantasma da máquina, ausência que era pura presença naquele 1971 em que o disco era gravado em Londres e no ano seguinte, quando Caetano volta do autoexílio. O 1972 em que a ditadura comemorou o “Sesquicentenário da Independência” e celebrou-se os cinquenta anos da Semana de 22. Ano em que Torquato decide botar o ponto final na vida mais curta e fulgurante da contracultura brasileira.
‘Transa’ evocava indiretamente as transas múltiplas de Torquato, que usa a expressão profusamente na ‘Geléia Geral’
Antes de especular sobre o que Torquato “diria”, convinha consultar o evangelho da piração que é “Geléia Geral”, coluna que ele manteve, como uma ilha de insanidade, na modorra imposta à imprensa censurada de então. Não tem erro: Transa não escapara às alucinadas escrituras. O colunista que cultivava a ligação no mundo como uma espécie de superpoder — “enquanto eu estiver atento, nada me acontecerá” — registrou em 15 de janeiro: na “noite anterior”, ao lado de “alguns bons amigos”, escutara o “disco novo” de Caetano.
Com as desculpas de uma memória “fraca e estragada”, lembrava vagamente a primeira canção: “You Don’t Know Me”. A ele impressionou o que dominava “todas as longas e belíssimas faixas”: a citação de “canções, compositores e momentos da música popular brasileira interessantes”. A Torquato, Caetano parecia didático ao samplear antes do sampler “trechos de ‘Maria Moita’ (Lyra e Vinicius), ‘Reza’ (Edu Lobo e Ruy Guerra), ‘Consolação’ (Baden Powell e Vinicius), etc, etc, etc”.
Verbo e substantivo, transar e transa dizem respeito aos encontros intensos e aos resultados desses encontros
Mais Lidas
“Triste Bahia”, escreve Torquato, “transada sobre Gregório de Matos, traz uma montagem fantástica de sambas de roda da Bahia, num painel cheio de cores, alusões, sujestas e paisagens que vai deixar muito nego encabulado e muito nego maluco quando sair na rua”. A ele impressiona a versão de “Mora na filosofia”, o samba de Monsueto (“bonita demais”), e “Nine Out Of Ten”, a que se refere como a “cantiga que fala em Portobello Road”. “Em todas as faixas do disco”, destaca, “o violão (e a guitarra, principalmente em Portobello Road), de Macal marca uma presença absolutamente clara nos ouvidos de quem tem e se liga em prestar atenção”.
[Macal, Jards Macalé, estava no estúdio londrino em 1971 e no palco carioca em 2023, assim como Tutty Moreno na bateria e Áureo de Souza na percussão. Moacyr Albuquerque, baixista, morreu em 2000; Gal Costa, participação vocal no original, se foi ano passado, no 9 de novembro que é dia de aniversário e morte de Torquato. Convidada, Angela Rorô, não pôde estar no Rio para refazer a gaita presente no disco.]
Susto ou surto tropicalista
Naquela altura Torquato já tinha rompido com o tropicalismo e com “os baianos”. Em 1969 partiu com Ana Maria Duarte, sua mulher, para Paris e Londres. É desta temporada que fica flagrante, tão cheio de ressonâncias, em que ele entra no penetrável Tropicália, incluído por Helio Oiticica na mitológica exposição da Whitechapel Gallery. Sobre sua cabeça, o dístico: “a pureza é um mito”.
Naquela altura, Torquato já tinha voltado ao Brasil e à Tristeresina, contaminando jovens poetas locais com sua energia transgressora. E ao falar de Transa parecia fazer uma revisão crítica do tropicalismo, como se o disco fosse uma síntese não declarada do movimento: a abertura ao pop, ao rock e ao reggae, as letras em inglês, o mergulho na MPB canônica, o samba urbano, o samba de roda, a bossa e o Recôncavo, a poesia setecentista e a poesia desbundada, a montagem como sintaxe.
Daqui vou uma vez mais a Caetano, à sua rememoração, nas páginas de Verdade tropical, do que lhe pareciam os pontos decisivos da personalidade de Torquato e de sua importância no susto ou surto tropicalista. Caetano escreve:
Torquato já tinha aderido ao ideário transformador: os Beatles, Roberto Carlos, o programa do Chacrinha, o contato direto com as formas cruas da expressão rural do Nordeste — tudo isso Torquato já tinha digerido e metabolizado com espontaneidade suficiente para deixar entrever sua apreensão da totalidade do corpo de ideias que defendíamos. (…) Ele superara as resistências iniciais por possuir uma inteligência desimpedida. A partir de então, sua concordância com o projeto passou a ser orgânica, e se algo podia parecer preocupante era justamente sua tendência a aferrar-se aos novos princípios como dogmas e a desprezar antigos modelos com demasiada ferocidade. (…) Torquato mostrava-se pronto para se tornar um arauto algo intransigente.
Três ideias aí são essenciais para definir Torquato. A “inteligência desimpedida”, que aponta para a abertura ao novo; a “ferocidade”, que inquietava Caetano mas é sinal inequívoco de convicção; e, finalmente, a disposição de enunciar os princípios estéticos, a função, não sem ironia, de “arauto” — ainda que, para o gosto de Caetano, um arauto “algo intransigente”. Desenha-se assim a inteligência aguda e indócil de Torquato, em trânsito frenético entre música, cinema, poesia e jornalismo. Em trânsito frenético no trânsito frenético das coisas.
Transa evocava indiretamente as transas múltiplas de Torquato, que usa a expressão profusamente na “Geléia Geral” — e não apenas porque é uma gíria da moda. Verbo e substantivo, transar e transa dizem respeito aos encontros intensos e aos resultados desses encontros. Transa e transar, ser transeiro, é inseparável da conotação sexual pois funda-se no desejo. E todo desejo é futuro, é o movimento necessário para um futuro possível, de concretização do que existe ainda como vontade. De casamento a uma publicação, o que se diz “não ter futuro” é o que não envolve mais ou nunca envolveu desejo.
Transa e transar, ser transeiro, é inseparável da conotação sexual pois funda-se no desejo. E todo desejo é futuro
“Projeto”, termo corrente e um tanto asséptico, também é uma proposição lançada para o futuro, mas “transa” é a energia vital dessa projeção. Foram as transas que arremeteram Transa, o disco, de 1972 para 2023 — quando Transa, o disco e o show, também atualizam o desejo num futuro imediato, em tudo aquilo que hoje nos move. Tudo o que Torquato transou atualizou o desejo, produziu futuro — até que ele deixou de querer e, com coerência devastadora, deixou na folha de um caderno: “De modo q Fico”.
Torquato foi o transeiro por definição, realizou uma ideia de intelectual dissonante, artista que é crítico, crítico criador que não discerne prática de reflexão e produz sem freios ou limites. Torquatália, nome sempre provisório desta obra ainda em movimento, é uma máquina de futuro nos dois sentidos, no futuro extenso, que em 2023 nos leva a falar dele, e no contágio de gente de toda idade e em toda parte, nos transeiros de uma Teresina nada triste: George, Viriato, Isis, Salgado, Thiago e tantas outras e outros.
Já dizia ele:
Escrever não vale quase nada para as transas difíceis desse tempo, amizade. Palavras são poliedros de faces infinitas e a coisa é transparente — a luz de cada face distorce a transa original, dá todos os sentidos de uma vez, não é suficientemente clara, nunca. (…) Cumpra essa de escrever somente o que não pode ser de outra maneira e não tem mais outro jeito — como sempre — e aproveite pra curtir a transa do nosso tempo e da nossa precisão: vá inventando, vamos todos inventar como no jardim da infância, descobrindo, descobrindo, revelando, deixando pronto, guardado.
Matéria publicada na edição impressa #73 em setembro de 2023.
Porque você leu Crítica Cultural
As vidas de Helô
Heloisa Teixeira misturou insubmissão e instituição, quebradas e ABL, poetas e pensadores em reflexão e ação múltiplas e únicas no debate cultural brasileiro
MARÇO, 2025