Heloisa Teixeira (Chico Cerchiaro/Divulgação)

Crítica Cultural,

As vidas de Helô

Heloisa Teixeira misturou insubmissão e instituição, quebradas e ABL, poetas e pensadores em reflexão e ação múltiplas e únicas no debate cultural brasileiro

28mar2025

Heloisa Teixeira foi Buarque de Hollanda até coisa de dois anos. A decisão de deixar o “nome de casada”, marca do “patriarcado” que a consagrou, e tatuar nas costas, aos 83 anos, o sobrenome que herdou da mãe foi anunciada pouco antes da posse na cadeira 30 da Academia Brasileira de Letras. Nada mais paradoxal, nada mais contraditório, nada mais Heloisa, que para espanto até dos que lhe eram próximos fez de sua extraordinária atuação como intelectual pública um jogo cerrado entre insubmissão e institucionalização.

Seu chão foi a universidade, a UFRJ, onde instalou um sismógrafo dos movimentos culturais e sociais que redefiniram o Brasil nas últimas seis décadas. A partir do título, sua tese de doutorado é uma declaração de princípios irretocável. Publicada em 1979, Impressões de viagem — CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70 ignora em forma e fundo pelo menos dois preceitos acadêmicos: a primeira pessoa e a distância do objeto, instaurando uma urgência de reflexão que o tempo mostrou acertada. E rara. 

Heloisa fez da incerteza uma bússola para estabelecer diálogos e conexões surpreendentes

Aliás, o que ela escreveu no prefácio à primeira edição valeria, nas décadas seguintes, para os engajamentos com os feminismos, a Flup e a prodigiosa Universidade das Quebradas: “A investigação desse debate é a investigação dos fundamentos do meu próprio percurso intelectual, ou seja, da sequência de contradições e descaminhos que constituíram a possibilidade teórica deste trabalho”. Pensar e agir eram inseparáveis, com suas dores e delícias.

Pois contradição e descaminho eram mato nos movimentos sempre impetuosos de Helô. Ela não temia o entusiasmo. E o desassombro, presente até na fala enfática, nunca lhe turvou o ponto de vista crítico. Não sem riscos, fez da incerteza uma bússola para orientar e reorientar projetos, caminhos, estabelecer diálogos e conexões surpreendentes.

Nas antologias de poesia que organizou, não pretendia estabelecer novos cânones, mas flagrar instantâneos de ebulição, ciente de sua impermanência. Adorava dizer, um pouco em tom de blague e muito a sério, uma de suas marcas, que não entendia nada de literatura. Seu negócio, como ela mesma dizia, era “crítica cultural”, mas uma crítica que também era ação, que sempre envolvia edição, evento, encontro, ação.

Ativismo cultural

Provocado pela Beatriz Resende, que trabalha num livro sobre Heloisa, sua amiga e companheira de tantas viagens, a refletir sobre esse perfil raro de intelectual, achei uma definição boa em Livros pequenos, da poeta argentina Tamara Kamenszain. Ela lembra que outra crítica brilhante, Josefina Ludmer, gostava da expressão “ativismo cultural”, uma “reflexão que também quer ser ação, que quer intervir”. Esse tipo de atuação, tão impalpável e tão efetiva, é o resumo que consigo agora para mensurar o que se perde com Heloisa.

Nos anos 1990, quando comecei a dar aulas na Escola de Comunicação e, por definição, me tornei um “colega”, mantinha uma distância reverente dela. “Eu gosto de sua mulher, mas não gosto nada de você”, ela me disse em nosso primeiro diálogo direto, quando lhe pedi uma entrevista. Ainda que muito, muito intimidado, consegui me safar: “Tudo bem, mas mesmo não gostando dá para rolar uma entrevista?” “Ah, entrevista dá”. 

Não começava ali uma amizade, mas um diálogo entrecortado que ao longo dos anos envolveu tantas outras entrevistas, aulas, projetos malogrados, um livro organizado para sua editora, a Aeroplano, conversas, palestras, muitas risadas, um inesquecível congresso na universidade Brown, nos Estados Unidos. Além, é claro, da certeza de ser muito mais careta do que ela.

Pouco antes da posse na ABL, Heloisa Teixeira disse ao Globo: “Não vou morrer Heloisa Buarque de Hollanda”. O sentido desta declaração só aos poucos se dará por inteiro, quando conseguirmos aquilatar a extensão do que ela pensou, escreveu e fez — tudo ao mesmo tempo agora.  

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).