Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Horas de leitura

Para aplacar ou aumentar a ansiedade das listas de melhores do ano, cinco livros que desafiam o senso comum

14nov2024 • Atualizado em: 29nov2024 | Edição #88 dez

Inevitável como o Natal, as listas dos melhores do ano e as retrospectivas de 2024 trazem, pelo menos para mim, a sensação de que se perdeu mais do que ganhou, de que li menos do que devia. Na tentativa de aplacar minha ansiedade — e, talvez, aumentar a do leitor — selecionei cinco livros que por motivos variados não deram em coluna, mas que, por razões ainda mais insondáveis, ficaram insistindo na cabeça do onívoro colunista. Se a eles não colaria o clichê do “imperdível”, posto que tudo, tudo nessa vida se pode perder, também não os deixaria de lado. São, cada um a seu modo, cutucadas no senso comum, esse flagelo da inteligência.

Voltar para casa

Barbara Cassin foi aluna de Heidegger e professora de Lacan. Filóloga, é membro da vetusta Académie française e tenho para mim que a variedade e a riqueza desse percurso intelectual e público é em muito responsável pela liberdade argumentativa de um livro como A nostalgia (Quina). Orientado pelo subtítulo Quando, afinal, estamos em casa?, o ensaio passa pela Odisseia e pela Eneida para, com Hannah Arendt, propor uma original e funda reflexão sobre identidade e pertencimento — ideias que cimentam os fascismos e que, também, podem ter papel central em combatê-los.

Barbara Cassin (Reprodução)

Lidas por Cassin, as vidas de Ulisses e Eneias, personagens de Homero e Virgilio, e a biografia da autora de Origens do totalitarismo, marcada pelo exílio, dão sentido diverso à ideia de nostalgia. A cura para esse mal não passaria necessariamente, argumenta, pela volta à pátria perdida, pela restituição de valores extraviados. A errância do desterro pode ser, em si, uma forma de estar no mundo, pode transformar o sentimento nostálgico numa projeção, num futuro, de um lugar que se possa ter como “próprio”.

A questão do pertencimento, de ter uma pátria ou uma identidade, não diria portanto respeito ao “onde”, a um lugar unívoco, mas, como sugere o subtítulo do ensaio, ao “quando”, à modulação das condições que fazem com que nos sintamos em casa. “Quando somos acolhidos, nós mesmos, os nossos próximos e a nossa, as nossas línguas”, escreve Cassin em excelente tradução de Cláudio Oliveira, também autor das notas e de um esclarecedor posfácio.

Barbárie como herança

A pichação apareceu uma semana depois da decretação do AI-5, marco da fase mais sangrenta da ditadura militar, assinado em 13 de dezembro de 1968: “Aqui mora um bandido comunista”. As cinco palavras arruinaram a estabilidade da família que vivia naquela casa. E, especialmente, a vida da mulher que, grávida de seis meses e mãe de dois filhos pequenos, esfregava o muro numa tentativa desesperada de anular a sentença da intolerância. O marido, deputado, já não voltara de uma ida à delegacia em Niterói, no Rio de Janeiro. Em breve ela também seria presa e, na cadeia, torturada./im

Ana Kiffer (Divulgação)

Romancista, poeta e ensaísta, Ana Kiffer ainda não tinha nascido quando acompanhou, na barriga da mãe, esse momento tão agudo. E, com a ajuda da ficção, procura dar conta do trauma e da restituição da própria história em No muro da nossa casa (Bazar do tempo). Escrito em duas vozes — a filha, de fato autora, também assume o ponto de vista da mãe —, o livro retoma com originalidade formal uma história que é de todos nós, a narrativa coletiva da barbárie brasileira.

Ana Kiffer retoma com originalidade uma história de todos nós, a narrativa da barbárie brasileira

“Vi que nossas vidas ficaram emaranhadas à frase, grafadas nela e garfadas por ela”, escreve. “Os muros silenciam, mas quando falam, vaticinam. A partir daí os nossos corpos e aquelas letras se entrelaçaram. Nos tornamos o que de fato vocês nem eram, bandidos e comunistas”.

Contra ideias correntes

Roberto Bazlen viveu nos lugares de refinamento da vida literária e intelectual italiana entre as décadas de 20 e 60. Muito do que de melhor se publicou no país naqueles anos essenciais passou por seu rigoroso crivo, como atesta Roberto Calasso em Bobi (Âyiné), retrato elíptico e amoroso de um triestino enigmático, de difícil definição — editor sem editora, escritor sem livros, intelectual sem atuação pública.

É comovente que Bobi tenha chegado às livrarias italianas no dia da morte de Calasso (aos oitenta anos, em 2021), editor-escritor que em interlocução intensa com Bazlen foi central na construção da Adelphi, a sofisticada casa editorial. “Com ele, pela primeira vez, eu tinha a impressão de alguém que conseguiu se livrar de todas as ideias correntes”, observa Calasso na tradução de Pedro Fonseca. “E isso após ter passado por elas, mas num tempo remoto, como doenças infantis”.

Autor de excelentes reflexões sobre a inexata ciência da edição em A marca do editor, Calasso celebra, com Bobi, uma espécie de amadorismo conceitual. Que obviamente não se confunde com desleixo ou interesse errático para se firmar como um compromisso que vai além do domínio estritamente profissional: “Bazlen era inadequado a qualquer função, exceto a de entender e de ser”.

Peripécias da inteligência

Em O grande relógio: a que hora o mundo recomeça (Nós), Silviano Santiago inaugura uma espécie de folhetim crítico, organizado em “Cadernos em andamento”. Nos cinco capítulos desta primeira leva acompanhamos, com sabor de intriga, as peripécias de uma inteligência fulgurante na construção da “interpretação contrastiva” de Machado de Assis e Marcel Proust a partir de Dom Casmurro e Um amor de Swann.

Silviano Santiago (Claudio Nadalin/Divulgação)

Se a obra de Proust é “um dos maiores acontecimentos literários”, uma expressão da “paixão francesa pela cultura ocidental”, a de Machado “escarafuncha solitariamente o obscuro mundo planetário”. E, observa Silviano, o faz “com o instrumental civilizatório que o autodidata carioca recebeu do colonialismo lusitano”.

Com domínio virtuoso do ensaio, Silviano Santiago se abstém de demonstrar uma tese monolítica

Com domínio virtuoso das astúcias do ensaio, o crítico e ficcionista se abstém de demonstrar passo a passo uma tese monolítica. Prefere contemplar o leitor com “exemplos de contrastes e outras comparações em nada inocentes, que lhe serão apenas sugeridos ou integralmente oferecidos”. O que chama de “provocações” são, a seu ver, uma “via de mão dupla”, uma porta de vaivém que “permite ao leitor entrar e sair”. No lugar da aula, o diálogo. No lugar do livro, o caderno.

Histórias da violência

Ralph Ellison (1914-94) fala pretuguês em Voando para casa e outras histórias, coletânea póstuma que reúne catorze contos do autor de Homem invisível (José Olympio). Pois é no registro oral tipicamente brasileiro, assim batizado por Lélia Gonzalez, que o tradutor André Capilé verteu narrativas em que a forma do Black English é, sob qualquer aspecto, inseparável daquilo que se conta.

Ralph Ellison (LOC/Reprodução)

Se o talho clássico marca a construção do impressionante Homem invisível, cujo protagonista negro atravessa sem ser percebido as tensões raciais norte-americanas, em Voando para casa Ellison é ostensivamente experimental. É falando que seus personagens se desentendem com o país segregado em que vivem.

“[Uma farra no parque]”, que abre a antologia publicada originalmente em 1996, é impressionante. Nele, um menino branco conta, sem meias palavras, o suplício de um homem negro. As descrições são indigestas, sobretudo porque o narrador imprime uma ostensiva naturalidade ao comportamento brutal que, ao que sugere, mantém coesa sua comunidade. É uma terrível preciosidade.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #88 dez em dezembro de 2024.