O dândi na primeira capa da *New Yorker*, em 1925 (Reprodução)

Crítica Cultural,

Cem anos de invenção

Desde 1925, a New Yorker mantém a mistura única de cultura pop e literatura, humor e poesia, crítica e reportagem

23jan2025 | Edição #90 fev

O centenário da New Yorker é fruto estranho no tedioso jardim das efemérides. Poucas publicações duraram tanto. E, dentre as mais longevas, pouquíssimas não apenas sobreviveram, mas mantiveram vigor, inquietação e relevância. De 1925 para cá, a revista jamais saiu de circulação. Quarenta e sete semanas por ano chega às casas de assinantes e raras bancas do planeta e, o que é mais importante, desdobra em variados formatos digitais um projeto editorial fiel ao original na medida em que, ao longo das décadas, soube dele se afastar.

Há cem anos, Nova York ainda não era Nova York quando, na semana de 21 de fevereiro, uma revista magra, de 32 páginas, trazia na capa um dândi de almanaque desenhado por Rea Irving, artista gráfico também responsável pela tipografia do título, óbvio e genérico. Afetado como sói acontecer aos dândis, Eustace Tilley, que assim seria batizado, divisa em seu monóculo (é suposto que dândis usassem monóculos) uma delicada borboleta. Não há manchetes ou chamadas que deem pista do que ali vai. É só isso.

Para conferir se os quinze centavos de dólar que desembolsara valiam a pena, o leitor tinha que atravessar páginas pontuadas por cartuns, caricaturas, anúncios de livrarias, espetáculos da Broadway, perfume francês e gravatas inglesas — e muito texto. “A The New Yorker começa com uma séria declaração de princípios, simultânea à uma outra, a de que não será assim tão séria em obedecê–los”, diz um dos tópicos do texto de abertura. “Esperamos estar em dia com a vida metropolitana”, prossegue, “registrar fatos e assuntos correntes, sermos alegres, bem humorados e satíricos, porém mais do que um simples bobo da corte”.

Ainda que não assinada, a “declaração de princípios” é toda Harold Ross, sujeito meio bronco, muito intuitivo e sem dúvida brilhante que criou a revista e, com mão de ferro, conduziu seus primeiros 25 anos. Compulsivo e criativo inventor de regras, padrões e modelos de texto e edição, Ross também foi o incansável zelador de sua implementação. Intervinha em cartuns (uma linha de texto para o máximo de expressividade dos desenhos), perseguia advérbios e lugares comuns (“nossos colaboradores são tão cheios de clichês quanto celeiros abandonados são cheios de morcegos”) e, pouco à vontade com a presença de mulheres num escritório dominado por homens, tentava editar até a vida alheia (“Pelo amor de Deus, nada de sexo na redação!”).

Em intenção, perseguia os melhores ideais do jornalismo moderno na ambição de capturar os movimentos impetuosos de uma cidade que, nas décadas seguintes, se tornaria o grande centro irradiante da vida intelectual e cultural do mundo anglo-saxão. Na prática, fez jornalismo fora do padrão, tornando-se parte das transformações que pretendia fixar. Mais do que espelho de um mundo novo, a New Yorker foi um de seus artífices, deu a ele um léxico e uma sintaxe incomuns pelas mãos de gente como E. B. White, Dorothy Parker, Joseph Mitchell, Lillian Ross, James Thurber e A. J. Liebling.

Mais do que espelho de um mundo novo, a ‘New Yorker’ foi um artífice, deu a ele léxico e sintaxe incomuns

Até então inédita, a mistura de cultura pop e literatura, humor e poesia, crítica e reportagem descolava-a tanto da velha guarda de revistas ditas cultas, como as vetustas The Nation e a Harper’s, quanto das publicações popularescas que se multiplicavam no início do século 20. Ross não mirava, no entanto, num meio-termo vizinho da mediocridade. Preferiu se instalar em território ainda não demarcado, o de uma sensibilidade urbana, cosmopolita, em que a ideia de “popular” não era incompatível com inteligência — e tampouco livre de doses de esnobismo. Em dez anos, a revista se tornaria uma instituição entre ricaços e remediados, celebridades e anônimos, graves e frívolos que povoavam os cinco distritos de Nova York — e muito além deles.

A gestão Ross resultou em pelo menos três clássicos do jornalismo, dois deles exemplos virtuosos de “perfil”, gênero biográfico que a revista inventou e assim batizou desde seu primeiro número. Em 1942, o anônimo Joe Gould, ex-aluno de Harvard que vagabundeava pelas ruas do Village e supostamente escrevia uma “história oral” da humanidade, foi retratado por Joseph Mitchell em “Professor Gaivota” (uma volta ao personagem, em 1964, resultaria no soberbo “O segredo de Joe Gould”). Em 1950, o legendário Ernest Hemingway seria esquadrinhado sem dó nem piedade por Lillian Ross no devastador “E agora, senhores, o que me dizem?”. Entre um e outro, a edição de 31 de agosto 1946 foi inteiramente dedicada a “Hiroshima”, minuciosa reportagem em que John Hersey narra uma das tragédias que definiram o século a partir da vida de seis de seus sobreviventes.

Legado ortodoxo

A morte do fundador, em 1951, não pôs fim à sua influência. Muito pelo contrário. Contratado em 1933, William Shawn assumiu o comando em respeito obsequioso aos princípios do chefe, com quem manteve uma relação conflituosa na teoria e, na prática, simbiótica. O homem que para Harold Brodkey, ficcionista assíduo na revista, combinava “as melhores qualidades de Napoleão e de São Francisco de Assis” conduziu a redação por 53 anos encorpando o respeito pelo passado com sua própria marca de austeridade, método e minúcia editorial. E, é claro, idiossincrasia.

Em 1965, quando a revista fez quarenta anos, Shawn ganhou um presente de grego: protagonizou, à revelia, uma série de reportagens em que Tom Wolfe demolia a New Yorker e seu legado. Com trinta e poucos anos, Wolfe estava no auge e não economizou veneno para retratar o mundo que o editor criara e que orbitava em torno dele. Para desgosto do sucessor de Harold Ross, “Pequenas múmias! A verdadeira história do rei da terra dos mortos-vivos da rua 43” foi publicado no suplemento dominical do Herald Tribune, que em 1968 ganharia vida própria com a revista New York. Parodiando o estilo da New Yorker, a provocação é, como as boas provocações, certeira e injusta.

A New Yorker, de fato, jamais acolheria a estridência de Wolfe, Gay Talese e da gangue do new journalism, mas foi Shawn que, em 1965, publicou — e, o mais importante, bancou dos pontos de vista editorial e financeiro — a interminável reportagem de Truman Capote que resultou em A sangue frio. Também em sua gestão, a revista notoriamente indiferente à conflagração do movimento dos direitos civis se abriu à colaboração de James Baldwin, que em 1962 assinaria a célebre “Carta de uma região de minha mente”, gênese de Da próxima vez, o fogo. Deve-se ainda a Shawn o momento jornalista de Hannah Arendt, na peculiar cobertura do julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann — a série editada sob a rubrica “A Reporter at Large” daria origem ao livro Eichmann em Jerusalém (1963) e registra o primeiro uso da expressão “banalidade do mal”.

A ortodoxia de Shawn permanece como legado em pelo menos um ponto fundamental: a obsessiva checagem de informação. Ficaram pelo caminho, no entanto, resoluções bizantinas como a ausência de um índice (enfim instituído em 1969), a determinação de que a assinatura do colaborador só viesse depois do ponto final dos textos e a proibição da primeira pessoa na seção “Talk of the Town” — que até 1992 usou o “nós” majestático. 

Demitido impiedosamente em 1987, depois de a revista ter sido comprada por S. I. Newhouse, dono da Condé Nast, Shawn foi sucedido por Robert Gottlieb, genial editor de livros que dizia para quem quisesse ouvir que não dava a mínima para jornalismo. Ainda assim, manteve-se no posto até a chegada, em 1992, de Tina Brown, jornalista inglesa que tinha ressuscitado a Vanity Fair e levou para a New Yorker a fotografia (outro item do index prohibitorum), um glamour inimaginável para a revista e, para seus detratores, uma considerável dose de vulgaridade.

2025

A New Yorker chega aos cem anos dirigida por David Remnick, no posto desde 1998, quando Tina pediu as contas para criar uma nova revista, a Talk. Repórter de primeira linha, estilista admirável, Remnick vem mostrando um justo equilíbrio entre tradição e inovação, explorando os dias que correm por ângulos e linguagens diversas. Podcasts excelentes, comentários diários e minidocs em vídeo complementam, no site e no aplicativo, a revista semanal. A assinatura não é exatamente barata para o Brasil — 120 dólares ao ano —, porém inclui o extraordinário arquivo, em que se pode navegar por cada número deste século de histórias, digitalizado em fac-símile. 

Na equipe de 2025 há pelo menos três assinaturas incontornáveis. Jon Lee Anderson é veterano repórter de guerra, biógrafo de Che Guevara e especialmente dedicado à América Latina; Hilton Als, Pulitzer por seu trabalho como crítico de teatro na revista, é o mais fino ensaísta sobre cultura, raça e gênero e pode ser lido em Garotas brancas (Fósforo); finalmente, Jia Tolentino dá forma e consequência à amplitude da rubrica “crítica cultural”, como se pode conferir no ensaios de Falso espelho (Todavia).

A publicação de 2025 continua um alento para o conformismo que exsuda da imprensa profissional

A festa do centenário é discreta. No dia 22 de fevereiro, a Public Library de Nova York abre a exposição A Century of The New Yorker. Para os cultores da era de ouro da revista é um banquete, já que a biblioteca é guardiã de mais de 2 500 caixas de arquivos da publicação, dos memorandos dos editores a cópias copidescadas das matérias, passando por correspondência com autores, documentos administrativos e originais de desenhos e cartuns. O material, riquíssimo, já nutriu vários livros, sendo um dos pioneiros About Town: The New Yorker and the World It Made, “biografia” da revista, cuidadosa e bem comportada, assinada por Ben Yagoda.

A comemoração oficial também ganha as livrarias em dois tijolaços de mais de mil páginas cada. A Century of Fiction in the New Yorker: 1925-2025 e A Century of Poetry in The New Yorker: 1925-2025 dão solenidade especial à tradição da revista de recolher em livro, de tempos em tempos, o que considera o melhor de sua produção. Coube a Deborah Treisman, editora de ficção e âncora de um podcast sobre literatura, selecionar 78 contos dentre os mais de 13 mil publicados pela revista — em ordem cronológica, o primeiro é de E. B. White; o mais recente, de Rivka Galchen.

Racismo e moralismo

Numa publicação em que as mudanças se dão lentamente — nestes cem anos foram apenas cinco editores-chefe —, Treisman é a segunda mulher na história a ocupar o cargo; a primeira foi Katharine Sergeant White, que ingressou na revista em 1925 e de lá saiu 36 anos depois, história contada na biografia The World She Edited: Katharine S. White at The New Yorker, que Amy Reading lançou em setembro do ano passado.

Kevin Young, o editor de poesia, foi o sexto poeta negro publicado pela revista depois de Langston Hughes — isso em 1999 — e assina a introdução do volume. Nesta, Young observa que, nos primeiros 75 anos de circulação, autores negros foram presença raríssima entre os colaboradores e, até os anos 80, a seção de poesia não acolheu nenhum asiático. Nas páginas literárias, o racismo andava de par com o moralismo: na antologia de prosa, Treisman registra que só em 1985 foi permitido imprimir um fuck e, em 1993, pela primeira vez leu-se, numa ficção, a palavra pussy.

Em lançamentos não diretamente relacionados com a festa, a McNally Editions publica duas antologias que ajudam a contar essa história. Constant Reader: The New Yorker Columns 1927-28 reúne pela primeira vez em livro as resenhas que Dorothy Parker publicou naquela seção. E New York Sketches compila vinhetas sobre a cidade que E. B. White publicou entre as décadas de 20 e 50, principalmente sob a rubrica “Notes & Comment”. Por aqui, o aniversário fica marcado pelo lançamento de Sempre repórter, a última autoantologia de Lilian Ross, que vou me abster de comentar pela razão óbvia de assinar o posfácio da edição da Carambaia.

Dos bravos enfrentamentos com Donald Trump à recente reportagem de Rachel Aviv, magistral, sobre os abusos que a filha mais nova de Alice Munro sofreu de seu padrasto (“Alice Munro’s Passive Voice”, publicada em 23 de dezembro último), a New Yorker de 2025 segue inquieta como a de 1925 e continua a ser um alento para o conformismo político e formal que exsuda de partes expressivas da chamada imprensa profissional. Isso desde o tempo em que uma resenha, de Dorothy Parker, é claro, poderia começar assim:

Em primeiro lugar, o meu exemplar de Adão e Eva, de John Erskine, tinha várias páginas não cortadas. Isso basta para acabar com meu dia. Não peço muito da vida; me deem um pouco de suco de laranja e café pela manhã, umas boas horas de sono, dois ou três números de telefone e consigo me virar. Mas eu espero que meus livros venham prontos para serem lidos.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #90 fev em fevereiro de 2025. Com o título “Cem anos de invenção”