Vista geral da parte preservada do Château Michel de Montaigne, que data do século 16 (Acervo pessoal)

Crítica Cultural,

Na torre com Montaigne

Cercado por ecobags, chaveiros e vinhos, o lugar em que nasceu o ensaio é um destino peculiar mesmo entre os despropósitos da peregrinação literária

13fev2025

É preciso imaginar Virginia Woolf feliz. E assim penso nela quando, em abril de 1931, ao lado do marido, Leonard, Virginia passou duas semanas rodando pelo interior da França. O tempo estava ruim, o carro enguiçou, os hotéis eram bem mais ou menos, faltava água quente. Entre uma coisa e outra, ela leu “de cabo a rabo” Filhos e amantes, mas D. H. Lawrence não passava de mero coadjuvante: Virginia só pensava em chegar à torre onde Michel de Montaigne, em suas próprias palavras, “consagrou esses doces retiros de seus antepassados à sua liberdade, à sua tranquilidade e a seus lazeres”. E, imerso numa biblioteca de mil volumes, inventou o ensaio.

Noventa e tantos anos mais tarde, em fevereiro de 2024, eu lembrava estas páginas dos copiosos Diários de Virginia quando, com Mme. P. ao volante, serpenteava pelas estradas em torno do vilarejo de Saint-Michel-de-Montaigne. O carro alugado era bom, o frio de fevereiro suportável; o hotel, ótimo. No trem rápido de Paris para Bordeaux, de onde partimos para Saint-Émilion, mais conhecida pela variedade dos grand cru do que pela produção de ensaios, a proverbial tensão de O adversário não me pegava inteiramente: Emmanuel Carrère perdia, e perdia feio, para a expectativa de visitar a torre. Aquela.

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É óbvio que uma viagem dessas “ocupa um lugar entre os despropósitos”, expressão que Adorno usou para definir justamente o ensaio — gênero que começa “com aquilo sobre o que deseja falar” e acaba quando se bem entende. Não por outro motivo, o gentilíssimo proprietário do hotel, que naqueles dias só nos tinha como hóspedes, procurava entender que diabos dois brasileiros faziam ali em pleno inverno, quando todas as vinícolas, principais atrações da região, estão fechadas.

Nem tentei explicar. Afinal, há pouco de razoável em percorrer quase nove mil quilômetros para contemplar os vestígios de um escritor e do mundo em que viveu no século 16. A peregrinação literária, como já escrevi aqui, é da ordem da decepção. E também uma espécie de autoengano de luxo.

Ainda que preocupado em nos indicar restaurantes, o dono do hotel traçou, no Google Maps, os melhores itinerários para percorrer os 22 quilômetros que nos separavam do tal castelo — do qual, parecia evidente, ele não tinha a mais remota referência como ponto turístico, monumento histórico ou coisa que valha uma visita.

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Temeroso em dar com a cara na porta, tinha escrito ao Château Michel de Montaigne para me certificar das datas. Sim, estavam abertos em fevereiro, informava o email enviado quase duas semanas depois. E era preciso comprar on-line os bilhetes que, por módicos 9,50 euros, davam direito a visita guiada (uma de minhas fobias) e “degustação” (outra delas) de vinhos produzidos na domaine.

No trem para Bordeaux, Emmanuel Carrère perdia feio para a expectativa de visitar a torre. Aquela

“Proponho uma vida humilde e sem lustro: pouco importa”, escreveu o dono da casa em “Do arrependimento”. “Pode-se ligar toda a filosofia moral tanto a uma vida ordinária e privada como a uma vida de mais rico estofo: cada homem traz a forma inteira da condição humana”, lembra a citação impressa no bilhete. Muitas outras são espalhadas aleatoriamente pelo castelo. 

No banheiro, por exemplo, o visitante pode lembrar de outro ensaio, “Da experiência”, cujas palavras estão pregadas logo acima do vaso sanitário, num papel sulfite que parece recém-saído de impressora caseira: “E no trono mais elevado do mundo ainda estamos, porém, sentados sobre nosso traseiro”. Para reforçar as ressonâncias filosóficas de hora tão íntima, a gerência também convocou o pobre Montesquieu, que nasceu no século seguinte a Montaigne e certamente não tinha em mente tal situação quando escreveu: “Sempre tive o princípio de nunca fazer por outros o que poderia fazer por mim mesmo”.

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A majestosa torre de pedra, que se impõe numa região de campos vastos e colinas suaves, é o que sobrou do prédio original, erguido no século 16 e destruído no correr dos anos por uma sucessão de incêndios. Em torno das ruínas a família Mähler-Besse, atual proprietária, construiu, já nos 1800, um château típico da região. Para simular laços historicamente inexistentes com o ilustre morador, mandou gravar no pórtico a frase “Que sei eu?”, que compunha o brasão original de Montaigne e virou uma espécie de elogio da dúvida, motor do ensaio.

Ao visitante também é oferecida uma visita a este castelo “moderno”, mas desta declinei, pouco interessado que sou em espelhos, cortinas e lareiras. Às dez e meia da manhã de uma quarta-feira lá estávamos, pontualmente, esperando a aguardada subida à torre. Além da guia, nos acompanhava uma mulher de uns quarenta anos e o filho, pré-adolescente, pregado no celular e ostensivamente desinteressado pelo que ali se passava. Em defesa dele, devo admitir que ali se passava pouco, quase nada.

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A biblioteca, escreveu Montaigne, “fica no terceiro andar de uma torre. No primeiro está minha capela, no segundo, um quarto com suas dependências, onde não raro durmo, quando quero ficar sozinho”. Antes um depósito, “o lugar mais inútil” da casa, a biblioteca se transformaria em território inexpugnável: “tento ter sobre ela um domínio absolutamente puro, subtraindo esse único recanto da comunidade conjugal, filial e social”.

“A forma da biblioteca é circular”, e aqui sigo deixando a apresentação com Michel, o detalhista, “e só é plano o espaço necessário para minha mesa e minha cadeira; ao curvar-se, ela vai me oferecendo com um só olhar todos os meus livros arrumados em estantes de cinco prateleiras em toda a volta. Tem três janelas com bela perspectiva livre e um espaço vazio de dezesseis passos de diâmetro”.

A maior emoção de visitar o lugar está em percorrer cada detalhe das descrições de um estupendo escritor

A primeira e talvez a maior emoção de visitar a torre está em percorrer cada detalhe das descrições de um escritor estupendo. E lembrar de outros que o sucederam, claro. “Palavra, Ethel”, escreveria Virginia a Ethel Smyth, compositora e líder sufragista, “a mesmíssima porta que ele abriu está lá: os degraus, gastos em profundas ondas, que levam à torre: as três janelas: a mesa de trabalho, cadeira, a vista, vinho, cães, tudo precisamente como era — quando? — não consigo lembrar.”

A viagem à roda da torre sobrevive até mesmo às intrusões mambembes feitas no ambiente: uma cama com dossel e jeitão de filme histórico de baixo orçamento, mesa e cadeira dispostas na biblioteca com duas velas novinhas em folha, o afresco do teto da capela “restaurado” de forma pouco crível. Uma outra restauração, séria, científica, reavivou as inscrições que Montaigne mandou fazer nas vigas do teto da biblioteca. Em grego e latim, lá estão as famosas citações de Eurípides e do Eclesiastes, Sófocles e Lucrécio, Heródoto e Terêncio.

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Dois quadros de escassa importância artística celebram momentos decisivos da história de Montaigne, que naquela propriedade nasceu em 1533 e lá morreria 59 anos mais tarde. Em A infância de Michel de Montaigne, ele é representado por Pierre-Nolasque Bergeret (1782-1863) como um anjo um tanto corpulento para um anjo, envolvido em panos e cercado por um homem ao alaúde e duas mulheres — uma presumivelmente a mãe; a outra, uma ama? Os fumos alegóricos nublam a imagem do menino criado falando latim, educado por preceptor inglês e, jovem adulto, hábil em costurar política e vida intelectual.

A torre onde, no terceiro andar, fica a biblioteca “em formato circular” de Michel (Acervo pessoal)

Joseph Robert Fleury (1797-1890), retrata-o no leito de morte. Em Últimos momentos de Montaigne, de 1850, o filósofo está num quarto muito maior do que aquele que se acaba de ver na torre e pequeno demais para os muitos personagens que o povoam. No centro da imagem, um padre ministra os últimos sacramentos. Há, segundo Philippe Desan, o maior especialista em Montaigne, autor da monumental biografia Montaigne: A Life, a ideia de fixar uma morte pública, em consonância com o prestígio que o autor dos ensaios alcançaria no século 19.

Mas não há palavra sobre isso em lugar nenhum. Os quadros são reproduções canhestras de originais depositados em museus da região. Exibidas em molduras douradas, destoam em tudo e por tudo do ambiente austero.

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As paredes de um pequeno cômodo, vizinho à biblioteca, testemunham despropósitos de outros tempos. O que Charles teria ido fazer por lá em fevereiro de 1888? Michel deixou sua marca na propriedade de seu xará em maio de 1949. Albert visitou o castelo em junho de 1924. Poderia ter passado horas diante dos grafites, mas fui convidado a seguir em frente. Tínhamos 45 minutos.

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Na casinha que serve de bilheteria e loja, é possível comprar, além dos indefectíveis chaveiros, canecas e ecobags, um curioso dedal de louça, bem como suportes para comer ovos quentes. Baralho, avental de cozinha, porta-níqueis e capas para cartão de crédito também estampam Michel em sua versão mais conhecida, calva pronunciada, cavanhaque bem desenhado, gola plissadinha impecável. 

O funcionário encarregado da temida “degustação” é, para meu alívio, breve e objetivo. Está menos interessado em storytelling do que em aliviar os estoques de Les Essais, vinho que a cada safra traz impresso em seu rótulo, claro, uma citação do autor. Em 2020, pelo jeito um ano de escassa criatividade, a referência vem de “Da embriaguez”: “Pois o vinho é capaz de fornecer à alma a temperança e, ao corpo, saúde”. Em 2003, “Da experiência” propõe reflexão mais indireta: “Saber lealmente gozar do próprio ser, eis a perfeição absoluta e divina”. A de 2022 não consegui localizar nos Ensaios e se parece tanto com Montaigne quanto um poema romântico com Clarice Lispector: “Não se bebe, dá-se um beijo no copo e o vinho retribui com uma carícia”.

Sob efeito da degustação, me tornei o feliz proprietário de uma placa de madeira que simula as caixas de vinho com a inscrição “Château de Michel de Montaigne”. E, voilà, de um busto do próprio, como aqueles de Beethoven ou Chopin que, pelo menos no subúrbio carioca, se costumava pôr sobre o piano de casa. Sim, um busto.

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Saint-Michel-de-Montaigne tem pouco mais de trezentos habitantes. O punhado de ruas compridas e desertas parece o índice onomástico de uma biografia de seu morador mais famoso. Em torno da rue Michel Eyquem de Montaigne, a principal, estão a rue Françoise de La Chassaigne, que homenageia sua mulher, a estrada Antoinette de Louppes, referência à mãe, e o impasse Pierre Eyquem, ao pai. No chemin de Éléonor é contemplada a filha e na curta rue Marie de Gournay registra-se a importância da amiga que compilou a versão final dos Ensaios. Além do vinho, o livro mais importante escrito naquele perímetro batiza um hotelzinho, o Jardin d’Essais.

No centro do vilarejo, está a igreja consagrada ao padroeiro da cidade, erguida no século 13 e arrasada em conflitos religiosos na região. Graças à Mme. Montaigne, foi reconstruída no início dos 1600. “No livro de registros da cidade referente à morte do filósofo consta que seu coração foi depositado nesta igreja”, informa uma placa que, montaigneanamente, celebra a incerteza. “Escavações foram realizadas, assim como a sondagem dos pilares, sem resultados. A dúvida persiste, pois não foi possível desmolir completamente a igreja. No entanto, como o texto é irrefutável, decidiu-se colocar uma placa comemorativa para marcar este depósito”.

O túmulo do filósofo fica em Bordeaux, no Museu da Aquitânia. Ainda que chegado a um cemitério histórico, não fiz direito meu dever de casa. E tive que percorrer todo o museu, nem sempre interessante para mim, até descobrir que o cenotáfio consagrado ao filósofo estava interditado, em processo de restauro, e só seria reaberto ao público em alguns meses.

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Uma dica do sommelier montaigneano nos levou de Saint-Michel a um lauto almoço em Castillon, por onde Virginia e Leonard também haviam passado e onde fizeram uma linda foto do Dordogne, o belíssimo rio que corta a região. Outra dica, mais aleatória, consultada no celular, deu numa vila fantasma, anexa a um portentoso castelo cujo interesse, para mim, estava no nome: Duras. Sim, Marguerite nasceu Donnadieu e incorporou a seu nome literário uma homenagem à cidade onde seu pai nasceu. Nada indicava, infelizmente para nós, que naquelas ruas funciona um discreto Centre-musée Marguerite Duras — certamente fechado no inverno.

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“Paris conquistou meu coração desde a infância. Só me sinto francês por causa dessa grande cidade, grande e sobretudo incomparável em variedade. A glória da França e um dos mais nobres ornamentos do mundo”. Montaigne está sentado sobre estas frases, pinçadas do ensaio “Da vaidade”, em sua mais célebre representação pública, uma escultura na praça Paul Painlevé, em Paris.

O seigneur de Montaigne foi parar na pracinha em 1934, como parte das comemorações dos quatro séculos de seu nascimento. Foi esculpido em mármore por Paul Landowski, que três anos antes inaugurara no Rio de Janeiro obra mais popular, o Cristo Redentor. Substituída por uma cópia em bronze,  já foi até personagem de filme, o intrigante Um conto de Michel de Montaigne (2013), de Jean-Marie Straub.

Montaigne foi esculpido por Paul Landowski, que três anos antes inaugurara o Cristo Redentor

Pernas cruzadas, o Montaigne de bronze tem o pé direito reluzente como resultado de uma tradição dos alunos da Sorbonne, que fica logo ali, do outro lado da rua: esfregar a mão no sapato do homem e dar um salve, um “Salut, Montaigne”, para ter sorte nas provas. O que sempre me lembra o Antoine Doinel menino, alter-ego de François Truffaut que, em Os incompreendidos, quase bota fogo na casa ao acender uma vela a Balzac pedindo proteção nos exames.

No domingo chuvoso que passamos por lá, a devoção ganhou, pelo menos para mim, um ritual espantoso. De longe, ficamos observando quando uma mulher de uns trinta anos, cabeça inclinada, concentrada, parecia de fato fazer uma oração ao padroeiro do ensaio. Seria um pedido? Uma promessa? Uma conversa? Queria muito saber mais sobre essa fé. Pondero que até as peregrinações insanas da literatura devem ter um limite. Mas não consigo estabelecê-lo no terreno pantanoso dos despropósitos.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).