Crítica Cultural,
Miséria e glória do antifascismo
Antonio Scurati une inquietação intelectual, pesquisa e verve literária ao narrar a tragédia de Leone Ginzburg e a vida de sua família sob Mussolini
19dez2024 • Atualizado em: 08jan2025 | Edição #89 janMarido de Natalia, pai de Carlo e avô de Liza, Leone Ginzburg chegou ao século 21 na contramão das dinastias literárias. Para ele, a posteridade viria sobretudo pelo casamento com a futura escritora e pela descendência desta união: o primogênito, que se tornaria historiador, e a filha deste, romancista. Em vida, a glória de Leone coincidiu com sua ruína. Em 1934 se recusou a assinar um juramento de fidelidade a Mussolini, condição para que continuasse a carreira na universidade; uma década e algumas detenções mais tarde, sucumbiria a torturas bárbaras numa prisão romana. A convicção antifascista, “manifestação espontânea das suas convicções morais, uma expressão do seu gosto estético”, destroçara uma carreira brilhante de editor, professor e ensaísta.
Em sua grandeza e miséria, morto pouco antes de completar 35 anos, Leone Ginzburg é personagem inseparável do tempo conturbado em que viveu. Nas páginas de A melhor época de nossa vida, torna-se contemporâneo dos dias sombrios que correm. Ao narrar, pelos caminhos sinuosos do ensaio e da ficção, uma trajetória repleta de lacunas, Antonio Scurati não faz da vida de Leone um monumento, mas um belvedere debruçado sobre o despenhadeiro do fascismo, que atravessa no tempo e no espaço dos comícios monumentais do Duce à intentona jeca de nosso 8 de janeiro. “Tudo é preferível ao fascismo”, escreveu Leone em carta à mãe.
Em 2015, quando publicou o livro na Itália, Scurati ainda não tinha alcançado a notoriedade mundial pela série de romances, iniciada três anos mais tarde, por M, O filho do século, biografia ficcional de Mussolini que já vai no quarto volume — o tomo final será publicado em 2025. Os M já lhe renderam o Strega, importante prêmio literário italiano, e, mais recentemente, o opróbrio de Giorgia Meloni, que o intimida como pode. Não deixa de ser um reconhecimento, e dos bons, ser perseguido pelos fascistas da hora.
O que une Scurati a Leone e perpassa o que há de comovente, divertido e sombrio em A melhor época da nossa vida é a questão incontornável da responsabilidade política do intelectual. Scurati narra uma bravura e também um equívoco histórico: Leone e seus contemporâneos foram tributários daquele “velho mundo liberal que se iludira pensando que seria possível exorcizar o fascismo sentando-se à mesa com ele”. Um mundo em que, não raro, mesmo homens honrados como o filósofo Gioele Solari constataria: “Não tive a coragem do exemplo, nem a do sacrifício”.
Politizar a memória, humanizar a política: esta a sugestão mais interessante e fecunda de um livro notável
Leone esgrimiu a primeira e sucumbiu ao segundo — e o fez “sem nenhuma retumbância romântica”. Não era militante nato e tampouco se tornaria um profissional. Acreditava, pelo menos a princípio e como muitos de nós ainda hoje, que o trabalho intelectual seria suficiente para conter a brutalidade. Quando percebeu a precariedade desta trincheira, disse o “não” que terminaria por abreviar sua vida. A partir dali dividiria seu tempo entre “as catacumbas do trabalho editorial” e as redes de resistência clandestinas.
Esse momento agudo, de grandes sacrifícios, é “a melhor época” da vida dos Ginzburg. A expressão de Natalia se refere, com ironia que sabe a vingança, aos três anos em que ela e Leone viveram confinados em Pizzoli, uma vila perdida na região de Abruzzo. Tendo a cidadania cassada pelas leis raciais, o casal foi, ao que parece, ridiculamente feliz no exílio interno: tiveram três filhos, Natalia completou seu primeiro romance, Leone continuou à distância seu trabalho na Einaudi, editora que ajudara a fundar em 1933 e onde tinha como colega Cesare Pavese. “A vida privada, apesar de tudo”, escreve Scurati, “ainda se atém a essa épica primitiva. As bombas não dilaceram a trama elementar”.
Método
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Mais do que coerência, humanizar um homem que não se queria herói é, para Scurati, uma questão de método. Ao seguir a vida de Leone, o escritor a entrelaça com as de seus avós paternos e maternos, gente pobre, nada intelectual, que viveu a seu modo a “épica primitiva” do cotidiano sob o fascismo e a guerra. As saborosas histórias dos Scurati e dos Ferrieri, com direito a uma participação de Totò, o popularíssimo comediante, demonstram, na prática, a tese de Leone sobre Guerra e paz. Num muito citado prefácio ao clássico do xará e compatriota — assim como Tolstói, Ginzburg nascera na Rússia —, Leone defende a repartição do livro entre “personagens históricos e personagens humanos”. Os primeiros pertencem ao mundo da guerra, “são condenados a representar um papel que não é escrito por eles”; os outros estão no domínio da paz, “amam, sofrem, erram, reconsideram, isto é, numa palavra, vivem”.
Em seu tempo, Tolstói declarou preferência inequívoca pelos “humanos”, ponto de vista que ecoa e se desdobra em Leone. Scurati por sua vez propõe uma caracterização ainda mais complexa, a busca de um lugar em que convergem inexoravelmente os mundos da guerra e da paz, do histórico e do humano. Ao trabalho intelectual cabe, portanto, evidenciar estes cruzamentos:
Que sejam, pois, narradas lado a lado, numa espécie de evangelho sinóptico profano, as vicissitudes trágicas do herói intelectual, da sua linhagem e da sua descendência e as da minha gente, gente comum, que sejam narradas até o ponto em que essa linha gera a mim, o escrevente. O mais insignificante.
Politizar a memória, humanizar a política: esta a sugestão mais interessante e fecunda de um livro notável em sua inquietação intelectual, pesquisa histórica e escrita literária. A despeito, é importante dizer, do pessimismo agudo de Antonio Scurati, que vê sua geração, a dos que nasceram no final dos anos 60, privada do “tempo da história” na mesma medida em que vive refém da “época da crônica, da mera sucessão dos fatos”. A melhor época da nossa vida de certa forma o desmente, em especial no
elogio que faz das habilidades do narrador, qualidade do que é humano e tão bem definida a partir de outro Ginzburg, Carlo: “Narrar significa falar aqui e agora com uma autoridade que deriva de ter estado (literal ou metaforicamente) lá e então”.
Matéria publicada na edição impressa #89 jan em janeiro de 2025.
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