Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

Um conto de arrogância

Livro mostra como a Uber passou por cima dos motoristas precarizados e das cidades que tentaram regular o aplicativo

01abr2020 | Edição #32 abr.2020

Em uma das cenas de 007: Cassino Royale, James Bond dirige seu carro até chegar a um resort à beira de uma praia no litoral das Bahamas. Os carros são um elemento central em todos os filmes do espião. Não são só simples meios de locomoção, mas se transformam em armas, transitam da terra ao mar, funcionam como escudo e, principalmente, concentram os gadgets mais avançados do ponto de vista da tecnologia. No entanto, essa cena estrelada por Daniel Craig em 2006 não era parte de nenhuma grande aventura da trama. Ela se torna relevante apenas na medida em que o empresário Garrett Camp presta atenção em um detalhe aparentemente sem importância: o celular de Bond exibia um mapa numa pequena tela. Um ícone de seta se movia pelo mapa conforme o carro se deslocava pela paisagem.

O dispositivo, avançado para a época, foi imediatamente associado a uma das obsessões de Camp: após vender sua start-up para o eBay e ter muito mais dinheiro do que poderia gastar, Camp ainda não conseguia se locomover de maneira eficiente por San Francisco. A imagem do filme de James Bond e o então recente lançamento do iPhone geraram a primeira ideia do que viria a ser a Uber.

Essa poderia ser apenas mais uma anedota para justificar mitos fundadores de empresas do Vale do Silício. Mas ela tem uma importância fundamental, não só pelo fato de ter permitido a conexão de pontos antes pouco evidentes. Quando pensamos na economia do compartilhamento, geralmente associamos ao uso mais inteligente de bens subutilizados ou mesmo não utilizados. Quartos vazios em apartamentos, carros que ficariam horas parados na garagem. A ideia principal está em usar a tecnologia para aproveitar o existente de maneira mais intensiva, em garantir acesso sem passar pela propriedade. Ainda que a Uber encarne essa ideia, a proposta original da empresa não teve origem em um contexto de escassez. A imagem de James Bond evoca status, luxo e exclusividade. E esta foi justamente a ideia original: tornar carros pretos de luxo mais acessíveis aos empreendedores da tecnologia de San Francisco, como se fossem membros de um clube de que poucos poderiam fazer parte.

Kalanick usou um algoritmo que determinava o menor salário possível que um funcionário aceitaria

O belicoso Travis Kalanick 

Em A guerra pela Uber, Mike Isaac retrata os bastidores do surgimento da empresa que mudou a maneira como nos locomovemos na cidade. Isaac afirma que “a saga da Uber é um conto de arrogância e excessos ambientado no contexto de uma revolução tecnológica, em que estão em jogo bilhões de dólares e o futuro dos transportes”. Ainda que a ideia original de exclusividade tenha vindo de Garrett Camp — a proposta de tornar qualquer pessoa um motorista em potencial da Uber veio apenas mais tarde, para competir com um aplicativo de caronas que começou a ser popular entre os funcionários do Facebook —, o fio condutor para retratar a trajetória desse unicórnio é outro de seus sócios fundadores: Travis Kalanick. A guerra que dá título ao livro se expressa em diversas batalhas travadas por essa figura altamente belicosa. A transformação proposta por Kalanick foi muito mais do que a desestabilização da indústria de táxis ou dos empregos formais de motoristas. Isaac retrata a história de uma personagem fáustica que destruiu tudo e todos que cruzaram seu caminho.

 Poderíamos esperar que a história da Uber fosse repleta de zonas cinzentas de legalidade. Aplicativos inovadores não costumam se encaixar nas regras jurídicas estabelecidas. Não é incomum que sejam considerados ilegais de saída. No entanto, a história de confrontos em torno da Uber vai muito além de alterações na regulação municipal de transportes de grandes cidades. Em diversos embates, Isaac narra a corporificação de uma cultura altamente agressiva e pedante. O livro conta, por exemplo, como a Uber se valeu de uma programação chamada Greyball — que evoca justamente as zonas cinzentas de legalidade — para fazer com que fiscais e autoridades locais não pudessem ver a atividade da empresa. Quando os inimigos deflagrados da Uber baixavam o aplicativo, não viam os motoristas circulando. Isso porque esse dispositivo criava um filtro exclusivo para enganar autoridades até que a Uber se estabelecesse plenamente em uma cidade nova.

Outro ponto controvertido é a plataforma chamada pela própria empresa de Hell [inferno]. A Uber se valia de dados de seus motoristas que também trabalhavam para a Lyft para mapear os dados da empresa concorrente e minar suas estratégias. Uma delas foi o Uber Pool, que foi copiado horas antes de a Lyft lançá-lo no mercado.

Kalanick é a figura central de todas essas estratégias. Um ceo incontrolável, que criou os mecanismos para não responder aos sócios, não prestar informações sobre o gasto do dinheiro dos investidores e fazer valer o que entendia ser o certo dentro de uma cultura tech bro. Kalanick foi o responsável por desenvolver um algoritmo que determinava o menor salário possível que um funcionário viria a aceitar. Participou de diversos casos de flagrante misoginia no interior da empresa, destratava funcionários publicamente, era conhecido por não se importar com a remuneração dos milhares de motoristas. E ostentava sua posição incontestável em festas delirantes promovidas pela própria Uber.

A guerra pela Uber é também a história da queda de Kalanick. Em 2017, o então ceo teve que recusar a participação na reunião de conselho de Donald Trump depois de ter suspendido o preço dinâmico da Uber durante a greve dos taxistas, que protestavam contra o banimento de muçulmanos por parte do novo governo. Uma soma de fatores internos e externos tirou Kalanick de seu lugar de destaque, o que também coloca em xeque essa dinâmica da inovação a qualquer preço.

O livro apresenta a história de como a Uber abriu seu caminho literalmente à força, passando por cima de cidades que pretendiam regular o aplicativo, de sócios que discordavam das estratégias de Kalanick, de motoristas que protestavam em razão dos baixíssimos salários e da exaustão pelas muitas horas trabalhadas, em uma trajetória em que a noção de destruição criadora ganha novos contornos.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #32 abr.2020 em março de 2020.