Arquitetura e Urbanismo, Mal-estar na civilização,
A tropa do atraso e a capital da esperança
Invasores da Praça dos Três Poderes não se reconhecem no espaço idealizado como símbolo de uma nova civilização
01fev2023 | Edição #66No breve lapso de uma semana, a Praça dos Três Poderes foi palco de eventos em tudo opostos. Como era possível que o mesmo espaço acolhesse a posse festiva, com a massa emoldurando a passagem de faixa na rampa do Planalto, no dia 1º de janeiro, e fosse alvo de depredação ensandecida no domingo seguinte?
Os vândalos falavam em “reintegração de posse” e, no mobiliário do Palácio da Justiça, inscreveram “supremo é o povo”. Para compreender de que povo e de que posse falavam, há que retomar os princípios fundantes daquele espaço. Ao fazê-lo, entende-se que as hostes radicais não queriam reivindicá-lo. Antes, pretendiam fazer terra arrasada de um ideal de país materializado pelo arquiteto e urbanista Lucio Costa.
De Vera Cruz a Brasília
Brasília, como a conhecemos, nasceu do concurso para o plano piloto — o termo foi colocado pelo arquiteto franco-suíço Le Corbusier, aventado ainda no governo Café Filho como consultor da futura capital, que se chamaria Vera Cruz.
Foi a separação entre o que é público e o que é privado o que permitiu associar Brasília ao futuro
Com Juscelino Kubitschek eleito no final de 1955, Oscar Niemeyer seria contratado no ano seguinte pela Novacap, autarquia que transformaria Vera Cruz em Brasília. Coube a ele rapidamente dar corpo à cidade, com os esboços para o seu centro cívico, o coração do poder da nova capital, o que ele fez, segundo suas palavras, na “tradição de todas as cidades do Brasil”. Nessa tradição, situava ali, além do palácio presidencial e da residência do mandatário, uma igreja. O conjunto seria entremeado por um parque à beira do lago. Mas os fatos mostram que, assim como o novo nome, seu desenho final a empurraria para longe da tradição colonial. Em 1957, o concurso para a urbanização da capital consagraria um esquema bem distante dos esboços iniciais de Niemeyer.
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O projeto vencedor de Lucio Costa previa que a capital se organizasse em dois eixos que se cruzam, um residencial e o outro, chamado monumental, formado por uma esplanada, em que se perfilariam os edifícios ministeriais. Esta seria arrematada por uma praça em que os Três Poderes democráticos teriam suas casas dispostas nos vértices de um triângulo equilátero, representação espacial da igualdade e do equilíbrio entre eles. Do conjunto, “Versalhes do Povo”, como certa vez Lucio Costa o nomeou, estavam ausentes a igreja e a residência previstos por Niemeyer, reforçando o caráter laico e público do Estado, a civitas mencionada na “Memória Descritiva do Plano Piloto”.
Foi a eloquência verbal do documento de Lucio Costa que convenceu o júri. Os desenhos, esquemáticos e por vezes obscuros, ilustram as palavras que descrevem o conceito e o funcionamento da cidade nova.
Não seria exagero dizer que a escolha de Lucio Costa por privilegiar a escrita vinha da consciência de que a cidade precisava de uma espécie de mito fundador antecipado à sua existência histórica. Brasília, em sua posição particular e em contraposição às grandes capitais mundiais, não se consagrava por um longo processo histórico.
Lucio inicia seu plano desculpando-se por se apresentar ao concurso. E, em seguida, coloca-se praticamente como porta-voz de algo maior do que ele. “Não pretendia competir e, na verdade, não concorro — apenas me desvencilho de uma solução possível, que não foi procurada mas surgiu, por assim dizer, já pronta.” A mítica Brasília brotava, assim, de forma quase incontível.
Igreja versus Estado
Enquanto a Vera Cruz de Café Filho parodiava o Rio de Janeiro como capital haussmaniana do início do século 20, a Brasília esboçada por Niemeyer aludia aos primeiros povoamentos espontâneos do país. A presença de um jardim ou parque, mas não uma praça, remete ainda ao esquema das construções rurais da tradição colonial portuguesa — que, embora muito apreciada pelos arquitetos modernos cariocas, guardava um sentido de poder hierárquico, de fundo privado, que Lucio Costa rejeitaria em sua concepção.
Desde cedo, registram os arquivos do Distrito Federal, estava prevista a igreja que, no querer de JK, deveria estar pronta logo, e no centro cívico, para a sagração da capital.
Três desenhos a lápis feitos por Niemeyer em março de 1957 e inéditos até 2021 — quando foram localizados por Alexandre Benoit e Rafael Urano em um exemplar de uma tradução francesa de Guerra e paz, de Tolstói, da biblioteca pessoal do arquiteto — trazem já a Praça dos Três Poderes de Lucio Costa.
Como ressaltam os pesquisadores no artigo “Guerra e paz: os debates sobre a construção do centro cívico em Brasília” (revista Risco, v. 19, 2021), os croquis deixam ver a tentativa de conciliação entre os desejos iniciais de Oscar Niemeyer e Juscelino Kubitschek e o plano de Lucio Costa; na praça prevista pelo urbanista, destaca-se o corpo estranho de uma grande igreja circular.
Em abril de 1957, Lucio Costa viajaria pela primeira vez ao sítio da nova capital. Conforme os registros da Presidência, ele e Kubitschek conversaram longamente após o almoço. O que se debateu não consta dos autos; no entanto, jamais uma igreja na Praça dos Três Poderes voltou a ser mencionada.
O gesto de Lucio de tirar a igreja da praça denota uma noção mais ampla e profunda de uma nova civilização do que a simples ideia de progresso associada aos edifícios de Brasília.
Os Três Poderes se encontravam na cabeceira da Esplanada dos Ministérios com a natureza do Planalto Central, demarcação iluminista da relação entre civilização e natureza, refundada na chave de uma antiga colônia que se emancipava; o espaço deveria dar a expressão plástica exata a esse ideal político moderno.
Mais do que os prédios pousados como naves no cerrado — que colaram à cidade a pecha de artificial, como nas célebres primeiras impressões que dela tiveram os escritores Clarice Lispector e Alberto Moravia —, foi a separação entre Igreja e Estado e entre o que é público e o que é privado o que permitiu associar Brasília ao futuro, conferindo à capital nascente traços específicos que nenhum dos outros projetos concorrentes conseguiu atingir.
As formas do mito
É certo que as lembranças da épica construção da cidade, em apenas três anos e meio, até hoje marcam Brasília. Em locais públicos e privados e em relatos orais de mais de uma geração, discursos de JK, lembranças e imagens se misturam à narrativa do memorial do Plano Piloto.
O mito necessário resiste ainda nesses sinais. Mas Lucio Costa não inventou a cidade — embora adorasse essa expressão. A sua Brasília exprime o empenho de uma geração que, desde os anos 30, apostou — não sem contradições e equívocos — na modernização do país como ruptura com as desigualdades herdadas das antigas elites agrárias, subservientes ao capital internacional. A arquitetura se alinhava a tantas outras manifestações progressistas da sociedade brasileira de então, impondo-se como carro-chefe, no campo das artes, desse esforço. É esse sentido cultural e político que guardam o Eixo Monumental e a Praça dos Três Poderes, tão delicadamente descritos no texto de Lucio Costa. A Oscar Niemeyer coube dar a solução para os palácios. As casas do povo deveriam ser simples, soltas do chão, em uma mensagem de otimismo e esperança. E, sobretudo, transparentes, como deve ser o poder em uma democracia.
Versalhes e Bastilha
Embora a visão de Lucio de uma nova civilização progressista tenha prevalecido, na maior parte do tempo o Eixo Monumental não realiza de forma plena sua função. É possível enumerar momentos, tão mais memoráveis porque excepcionais, em que se sagra como a Versalhes do Povo: o velório de JK em 1976; a primeira posse de Lula, em 2003; a subida da rampa do Palácio do Planalto, plena de sentidos, em 1º de janeiro de 2023. Instantes que se estendem ainda a atos populares, como os protestos de indígenas contra o Marco Temporal.
Nos últimos anos, também se configuraram ali os rastros da polarização ideológica. Em 2016, à beira do impeachment de Dilma Rousseff, a esplanada foi dividida por um muro, espacialização de um país dividido e do distanciamento do otimismo fundante da cidade.
Durante seu governo, Jair Bolsonaro deu reiteradas demonstrações de sua repulsa ao sentido cívico desses espaços. Preferiu sempre o cercadinho do Alvorada, repetição improvisada da portaria de seu condomínio na Barra da Tijuca, patética analogia do coreto de uma Sucupira qualquer.
A paródia involuntária da tomada da Bastilha protagonizada pelos terroristas do 8 de janeiro convoca a barbárie para aniquilar os símbolos de um novo país que se imaginou a contrapelo da matriz colonial. Chamar de “reintegração de posse” a destruição que se serviu até das pedras portuguesas do chão é querer arrasar um projeto de nação que, embora combalido, resiste e se transforma desde então. Projeto esse que não só se substancia nos palácios como em suas obras de arte e objetos.
O projeto de Lucio Costa exprime o empenho de uma geração que apostou na modernização do país
Nos últimos quatro anos, o acesso público aos edifícios históricos foi vedado pelo presidente e sua equipe. Cabe perguntar quem, portanto, alijou o povo dos símbolos da democracia em Brasília.
Na direção oposta, Luiz Inácio Lula da Silva dá mostras de compreender o espaço da Praça dos Três Poderes. Eloquente disso foi seu gesto de descer a rampa do Planalto acompanhado dos governadores e magistrados e cruzar o espaço rumo à sede do Supremo Tribunal Federal após os ataques. Até as pedras que na praça resistiram às picaretas terroristas compreenderam o caráter simbólico dessa caminhada.
É de esperar, pois, que essa compreensão perdure, e que os representantes dos Três Poderes não cedam à tentação de blindar a praça e obliterar sua fluidez em nome da segurança. Na relação equilibrada e aberta entre seus edifícios estão encarnados os princípios democráticos e republicanos do país que se quis figurar em Brasília.
Matéria publicada na edição impressa #66 em dezembro de 2022.
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