Literatura,

História de uma infâmia

Depois de seis anos de processo, o autor experimental se vê livre da acusação de ter plagiado Borges em seu livro “O Aleph engordado”

15nov2018 - 17h46 | Edição #9 mar.2018

É possível fazer um morto falar? Ou melhor: pode-se falar em nome de um morto? Eis uma pergunta metafísica, que é inclusive ética, mas é sobretudo estética. Não sei a resposta. Apesar disso, me animo a dar uma: acredito que Borges se divertiria muito com El Aleph engordado, de Pablo Katchadjian (Buenos Aires, 1977), e por outro lado teria ficado horrorizado com o que aconteceu depois. 

Seja como for, posso confirmar o seguinte: para a imensa maioria do campo literário e cultural argentino — eu inclusive —, pareceu um horror o que aconteceu judicialmente com esse livro, uma total falta de sensibilidade de María Kodama — viúva e herdeira dos direitos de Borges —, que beira a incompreensão dos valores estéticos de seu titular original. Advogados como forma de frear a vanguarda: eis uma boa metáfora, não só da conduta de Kodama, mas de certa sensibilidade fascistoide argentina, muito mais arraigada do que se pensa.

Passemos então aos fatos. Em 2009, o escritor Pablo Katchadjian publicou El Aleph engordado, num projeto estético que forma um sistema com outros textos seus, como El Martín Fierro ordenado alfabeticamente, entre outras intervenções. Martín Fierro (1872), de José Hernández, é o texto-chave da literatura argentina do século 19. O gaucho — o homem do pampa — aparece como personagem central. Katchadjian, do modo lúdico, põe os versos em ordem alfabética. O resultado é tão delirante quanto interessante: uma intervenção — em chave de arte conceitual — sobre a identidade literária argentina.

Em El Aleph engordado, ele pega “O Aleph”, o célebre conto de Borges, e o engorda: acrescenta alguns parágrafos, como uma busca de um efeito de sentido. É tudo. Apenas uma piada menor, um jogo livre, em clara sintonia com o próprio Borges, que construiu toda a sua obra sobre citações apócrifas, histórias falsas, ficções inventadas, reescrita de textos clássicos e toda sorte de efeitos intertextuais.

Publicado em edição artesanal de apenas trezentos exemplares, sem ISBN (isso é central: não havia possibilidade de venda ao público, ou seja, de lucro econômico), não demorou a cair sobre Katchadjian o peso do poder de Kodama (e seus amigos, que estão entre os mais reacionários do poder literário e político argentino). Mais parece uma cena de Jurassic Park: de repente, o imenso dinossauro, até então distraído, escuta um barulhinho no meio da vegetação. Então gira a cabeça devagar, fixa o olhar naquele bichinho e descarrega com violência toda a sua fúria sobre ele. Mas, por sorte, no caso de Katchadjian, falhou. Mas fracassou depois de anos de tentativas e de um sem-número de circunstâncias aberrantes. 

Plágio de Borges

Volto aos fatos. Ao se inteirar — com muito atraso — da publicação de Katchadjian (a quem poderíamos chamar de K., não fosse tão óbvia a referência kafkiana ao que aconteceu), em 2011 ela o acusa judicialmente de plágio. Plágio de Borges, por um livrinho de trezentos exemplares, fora do comércio, pensado como uma intervenção estética! 

Então aconteceu o mais temido: depois que o processo começou e uma perícia comparou os textos, o juiz de instrução de Buenos Aires Guillermo Carvajal determinou que Katchadjian devia ser processado por fraude. 

Tudo parecia obscuro no horizonte cultural argentino: sua condenação significaria um antecedente terrível para a liberdade de criação artística

Nesse meio-tempo, o diretor da Biblioteca Nacional de então (durante o governo peronista de Cristina Kirchner) e o diretor atual (membro do governo neoliberal de Macri) apoiaram Katchadjian, assim como César Aira, Beatriz Sarlo e os principais escritores e intelectuais argentinos. Um ato público — no qual éramos centenas de pessoas — se realizou em apoio a Katchadjian, criticando a atitude de Kodama e da Justiça argentina. Houve um momento em que Katchadjian chegou a ser embargado economicamente e foi proibido de sair do país. “Dou por fé que Pablo Esteban Katchadjian fraudou os direitos de propriedade intelectual que a legislação vigente reconhece a María Kodama em relação à obra literária ‘O Aleph’”, lê-se na decisão de primeira instância. 

A justiça contra a vanguarda. O dinheiro e o poder contra uma brincadeira inofensiva. Em seguida veio a fase das apelações. Katchadjian apelou da decisão (representado por seu advogado Ricardo Strafacce, também escritor, autor da monumental biografia de Osvaldo Lamborghini, personagem central da vanguarda literária dos anos 1960). O processo passou para a segunda instância, na qual primou o senso comum: Katchadjian foi absolvido por falta de mérito. 

Mas o senso comum não chegou a Kodama: seus advogados apelaram da decisão. O processo continuou. Enquanto isso, Katchadjian deu prosseguimento a seu projeto literário, em especial com o romance Qué hacer (2010), verdadeiro tour de force na tradição do nonsense e do surrealismo, uma das coisas mais interessantes da literatura argentina contemporânea. 

Acaba de sair um novo resultado: Katchadjian não foi condenado na primeira instância, tendo o processo se encerrado sem julgamento de mérito. E, depois, nova apelação, desta vez de Kodama: a quarta câmara da corte de cassação voltou a processá-lo. Naquele momento, tudo parecia obscuro no horizonte jurídico de Katchadjian, mas também no horizonte cultural argentino: sua condenação significaria um antecedente terrível para a liberdade de criação artística. Então Katchadjian voltou a apelar. A história ia se repetir pela segunda vez. Nas duas como tragédia?

A causa já estava longe da primeira instância, estava na corte de cassação, que devia responder à apelação. E a resolução chegou há pouquíssimo tempo: Katchadjian, depois de mais de seis anos de processo, foi absolvido. Agora definifivamente. Borges, autor da História universal da infâmia, deve estar sorrindo satisfeito em seu túmulo, na longínqua Genebra. [Tradução de Paulo Werneck

Quem escreveu esse texto

Damián Tabarovsky

Crítico e ficcionista argentino, é autor de Literatura de esquerda (Relicário).

Matéria publicada na edição impressa #9 mar.2018 em junho de 2018.