Literatura,
Ruínas do progresso
Destaque da nova ficção argentina, Hernán Ronsino tematiza em romance o fracasso industrial do país
14nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18Hernán Ronsino publicou três romances: La decomposición, Glaxo e Lumbre. Leitor agudo de uma certa tradição argentina que inclui nomes como Miguel Briante, Juan José Saer e inclusive Rodolfo Walsh, é um dos mais sólidos narradores não apenas de sua geração — que beira os quarenta anos — mas também da literatura argentina das últimas décadas.
Esses três romances vão e vêm, rodeiam, retomam e ampliam um tema, um lugar — um pequeno pueblo na província de Buenos Aires — e uma série de personagens que refletem sobre a recordação, a ausência, os conflitos pessoais e também as situações políticas. A última ditadura militar [1976-83], a vida ao redor da fábrica, os conflitos geracionais, são os tópicos que Ronsino desenvolve em uma narrativa de frases lentas, morosas, com construção como que de ourives.
Sem dúvida, a de Ronsino é uma das literaturas que especulam mais a fundo acerca da indagação sobre a memória, sobre os alcances da memória em um povoado que fez da desmemória, da falta de senso crítico, um de seus principais traços.
Ronsino não parece estar escrevendo romances, isto é, simplesmente escrevendo um romance atrás do outro; sua ambição — até agora exitosa — é a de construir uma obra. Tem projeto, um olhar próprio, uma forma pessoal de entender a literatura como um modo de restituir espessura intelectual, densidade literária, à interrogação sobre a passagem do tempo.
As formas da violência
Glaxo se estrutura a partir do relato de quatro personagens em diferentes momentos entre 1959 e 1984, em torno de uma fábrica que dá nome ao livro. Em um pueblo aprazível, onde as fábricas, o comércio e as pessoas aparecem ou desaparecem sem motivos e sem gerar muito espanto, a notícia de um crime é a única pista de uma traição silenciosa.
Glaxo é um romance que indaga sobre as formas com que a violência estatal argentina golpeia a vida privada das pessoas. A tranquilidade do pueblo é um universo fechado, sóbrio, anódino, mas ao mesmo tempo carregado de tensões, de conflitos solapados, de vidas destroçadas. Ronsino, como poucos, sabe construir essa atmosfera agourenta, esse clima irrespirável, essa angústia que governa os destinos da narrativa.
O abuso de poder parece ser o horizonte do romance, e a prosa levanta-se contra essa violência
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Pois há angústia, e também dor e violência nesses quatro personagens, nessas quatro épocas: Vardermann, em 1973, testemunha de como arrancam os trilhos do trem que não passará mais e que sonha com descarrilamentos. Em 1966 é a vez de Miguelito Barrios. 1984 é a época de Bicho Souza, num dezembro cálido, bem perto do retorno à democracia após a ditadura. 1959 é o ano escolhido para o general Folcada, personagem que emerge do grupo de fuziladores do massacre de José León Suárez, momento crucial da história argentina, em que milhares mandam fuzilar simpatizantes peronistas (Perón havia sido derrotado em 1955). Sobre esse fato, Rodolfo Walsh escreve Operação massacre, livro que inventa a reportagem política e o novo jornalismo na Argentina, que Ronsino retoma — de modo lateral — em Glaxo.
Em segundo plano, o relato toca nos temas da traição e do dever moral. Seria Ronsino um moralista? Talvez. O abuso de poder parece ser o horizonte do romance, e a exigência da prosa é levantar-se contra essa violência exercida sobre os corpo e sobre a memória. Porque se há um dever em Ronsino é o dever de ter memória: na memória obturada desse pueblo se trava a batalha pelo sentido e também pela possibilidade redentora da justiça.
Resta a fábrica, a cena de um pueblo em torno a uma fábrica. Restos de uma Argentina que uma vez sonhou em ser um país industrial, desenvolvido. Um país mais justo. Glaxo e também o romance desse fracasso, dessa derrota, desse sonho não realizado, convertido, com o passar do tempo, em pesadelo. [Tradução de Paulo Werneck]
Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.
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