Crítica Literária,

Único e múltiplo

Mesmo com o discutível aval da viúva de Borges, enciclopédia sobre autor argentino é trabalho notável

15nov2018 | Edição #9 mar.2018

Antes de começar a leitura de Borges babilônico: uma enciclopédia, é inevitável experimentar um certo entusiasmo. O organizador é muito respeitado no mundo dos estudos literários latino-americanos, a edição da Companhia, como de costume, é muito bonita, o livro não poderia ser mais promissor: um dicionário de todos os temas, nomes, assuntos, referências e citações que aparecem na obra de Jorge Luis Borges. Com mais de 570 páginas no generoso formato 16 x 23 cm, mais de 65 colaboradores (entre brasileiros e estrangeiros), mais de mil verbetes, o volume tem tudo para se converter em texto de referência sobre Borges. E, sem dúvida, depois da leitura, é bem-sucedido.

Mas, recuando um pouco, ao abrir o livro encontramos uma foto de Borges com María Kodama, e nos invade um mar de dúvidas sobre a qualidade do que encontraremos ali dentro. Kodama, herdeira dos enormes direitos autorais de Borges, pertence à larga tradição de viúvas que não entenderam patavina da obra do esposo. Sua atuação pública, feita à base de advogados ameaçadores, lugares-comuns e uma carga de vitimização permanente, encarna o oposto à melhor tradição borgiana, feita de inteligência, erudição e um senso de ironia fora do comum. 

Borges conheceu Kodama em fins dos anos 1960, quando ele, nascido em 1899, tinha escrito a parte mais importante e central de sua obra, e se encontrava na fase que o levaria às inevitáveis velhice e morte. É claro que não há nenhum rastro de influência de Kodama sobre o talento do escritor. Então por que a foto de página inteira? Por que a homenagem a uma figura tão desprestigiada quanto desprestigiante? Por amizade do organizador? Por algum tipo de prebenda? Por um descuido editorial? Não sabemos.

Sabemos é que, salvo por essa pedra no meio do caminho — pedra que não é menor —, a partir da página seguinte encontramos um livro extraordinário, imprescindível para os amantes de Borges, que também, nas entrelinhas, permite compreender a cena literária argentina de boa parte do século 20. Como toda enciclopédia monumental, tem verbetes notáveis, outros menos bons, outros que estão sobrando. Verbetes muito bem pensados, outros nem tanto, e alguns que faltam. Eu gostaria que houvesse um verbete sobre “Tradição” e outro sobre “Vanguarda”, afinal os dois eixos — em permanente tensão — sobre os quais se pode ler a obra de Borges.

Criollismo 

Mas, deixando esse detalhe para trás, há textos que merecem ser lidos quase como ensaios autônomos, tamanho é o interesse. Primeiro, o de Beatriz Sarlo sobre “Buenos Aires”, que começa analisando a nostalgia de Borges por um “passado que imagina”, para depois definir a poética de Borges como “o criollismo urbano de vanguarda”. A literatura de Borges se ergue na “cidade criolla que persiste na cidade moderna, a planície pampiana que se reflete no pátio”. Ou, por outra: “Sem essa dimensão cultural, a Buenos Aires moderna seria uma cidade sem raízes”. E daí a conclusão perfeita: “O cosmopolitismo em Borges não pode separar-se de sua reformulação do criollismo”. 

Piglia vai em busca de si mesmo, de suas obsessões. Só que a obra de Piglia é quase desprovida de interesse, e seu verbete não poderia ser diferente

Edgardo Cozarinsky escreve uma série de verbetes breves sobre amigos excêntricos de Borges, como Santiago Dabove ou Macedonio Fernández, que, na verdade, foi um de seus mestres. Também escreve sobre as duas irmãs Ocampo: Silvina — de quem a própria Companhia da Letras prepara uma boa antologia de contos: que bom que a Penguin continue a publicar bons livros — e Victoria, diretora da mítica revista Sur, que publicou originalmente muitos contos de Borges, personagem da oligarquia argentina, mas ao mesmo tempo feminista e aberta ao que havia de mais interessante na época.

Cozarinsky nota que, em 1961, Victoria apoiou a captura, na Argentina, por serviços de inteligência israelenses, do proeminente trânsfuga nazista e Adolf Eichmann. É uma informação menor na biografia de Ocampo, porém maior nas preocupações intelectuais e na obra cinematográfica e literária de Cozarinsky, que, assim, entra no mundo de Borges na posição de autor: em busca de seus próprios interesses políticos e estéticos. 

No verbete sobre “Memória”, Ricardo Piglia realiza a mesma operação: vai em busca de si mesmo, de suas obsessões. Só que a obra de Piglia é quase desprovida de interesse, e o verbete não poderia ser diferente. Adriana Astutti, em “Beatriz Viterbo” (protagonista de “O Aleph”), leva a cabo um grande verbete — dos melhores do livro, senão o melhor — no qual traça uma grande genealogia dos diferentes usos e leituras de “O Aleph” até chegar ao presente. 

Espelho

João Adolfo Hansen enfrenta um tema complicado: “Espelho”. Difícil, pois espelho — como tigre, como ouro — pertence à galeria de termos que se tornaram lugares-comuns, trivialidades sobre Borges (é preciso acrescentar que alguns dos maus poemas da última fase de Borges permitem essa leitura banal). Mas Hansen se mostra lépido e entrega um texto — quase uma tipologia dos usos que Borges lhe fornece — impecável, do qual resgato a versão de espelho como “Vanitas: o espelho como um diabo mudo”. 

Em sua apresentação, Jorge Schwartz esclarece que “o processo seletivo do corpus dos termos foi, sem dúvida, subjetivo e arbitrário”. Efetivamente, na leitura se nota a subjetividade e a arbitrariedade dos verbetes e dos textos. E é isso precisamente, essa arbitrariedade bem argumentada, essa subjetividade bem expressada, o que torna esse livro interessante e, talvez, único. [Tradução de Paulo Werneck]

Quem escreveu esse texto

Damián Tabarovsky

Crítico e ficcionista argentino, é autor de Literatura de esquerda (Relicário).

Matéria publicada na edição impressa #9 mar.2018 em junho de 2018.