Direitos Humanos,
Arsenal de livros
Despachos do front cultural em Kiev: a editora ucraniana Anetta Antonenko resiste com seus livros, seus gatos, sua língua — e sua arma
04mar2022 | Edição #56Há uma década, participei do Salon du Livre, a maior convenção de livros da França, que reúne editores do mundo todo. Oficialmente, fui até Paris para apresentar a edição francesa da biografia que escrevi de Clarice Lispector. Mas eu tinha também uma missão secreta: queria encontrar editores ucranianos para que Lispector fosse lida na terra onde nasceu. Há exatos cem anos, ela e sua família fugiram, percorrendo as mesmas estradas, e até as mesmas ruas, que os refugiados ucranianos estão percorrendo hoje.
Eu não conhecia nenhum editor ucraniano. Não era um agente; não tinha nem ideia de como fazer isso. Apenas sentia que isso era importante, e quando finalmente encontrei uma solitária editora ucraniana, uma mulher de meia-idade chamada Anetta Antonenko, tentei contar a minha história.
Clarice Lispector foi a maior escritora modernista do Brasil. Ela era tão brilhante, tão magnética, que seus compatriotas passam maus bocados para simplesmente tentar descrever “a princesa da língua portuguesa”. E esse motivo de orgulho para a cultura brasileira nasceu na Ucrânia. “Levá-la de volta ao seu berço é uma questão de honra nacional, de tentar corrigir uma injustiça histórica”, eu disse.
De fora, devíamos parecer uma dupla cômica: tenho quase o dobro da altura de Anetta, e nenhum de nós sabia falar muito na língua do outro. Ainda assim, graças aos milagres que aproximam as pessoas destinadas a se entender, nós nos entendemos.
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Pouco depois, a Anetta Antonenko Publishers passou a editar a obra de Clarice. Antonenko já publicou três de seus romances e está preparando uma edição ucraniana de A paixão segundo G.H. Ela também é a editora ucraniana de Georges Bataille, Federico García Lorca e Jorge Luis Borges e estava à espera — justo esta semana — da tradução de minha biografia de Susan Sontag.
‘Eles se ‘apropriaram’ de nossos escritores e os chamaram de russos. Agora invadiram nossa terra e querem chamá-la de Rússia’
Alguns dias atrás, ela me escreveu contando que seu pai era soldado e sua mãe era médica: “Eu sei atirar, e sei curar”. Agora, essa mulher culta e bondosa está sentada em um apartamento em um bairro outrora pacato, a apenas três quilômetros da Estação Central de Kiev. “Estou em minha própria casa”, ela disse quando conversamos pelo WhatsApp no último final de semana de fevereiro. “Estou com meus dois gatos, e não quero me esconder. Eu me recuso a sentir medo em meu próprio país. Por isso, estou trabalhando o máximo que posso. O trabalho salva.”
Ela estocou comida suficiente para comer por dez ou quinze dias — e para seus gatos comerem por um mês. E, assim como milhões de civis ucranianos, tem uma arma em casa. Quando tinha vinte anos, seu pai a ensinou a atirar, e, embora ela vá completar sessenta no próximo janeiro, está pronta para usá-la em caso de necessidade. “Não tenho medo de lutar. Mas acredito que as palavras são uma contribuição significativa para nossa vitória. Recebi muito apoio moral de editores, agentes, autores, tradutores, embaixadas e fundações. Faço tudo o que posso para ajudar a divulgar nossa situação.”
Cultura ucraniana
Antonenko começou a publicar exclusivamente livros em ucraniano em uma época em que, naquele país em grande parte bilíngue, muitas obras de literatura só estavam disponíveis em russo. Como a maioria dos ucranianos de sua geração, ela é fluente em russo. “A Ucrânia era a porção mais instruída da antiga União Soviética. Nós, e não a Rússia, sempre fomos a nação que mais lê livros. Tenho a sagrada convicção de que uma nação é seu idioma. E quando a Rússia nos invadiu e ocupou a Crimeia e Donbass (em 2014), decidi que publicar livros em ucraniano seria a melhor forma de colaborar para o meu país.”
Sua persistência deu resultado: “A situação econômica era ruim. Em termos anímicos e financeiros, foi difícil. Mas batemos nossas metas orçamentárias para os primeiros cinco anos em apenas três”. A editora se beneficiou de um renascimento do idioma. Nos últimos anos, “houve um aumento perceptível no uso do ucraniano, tanto em público como em privado”.
Ocupação
Antonenko compara a ocupação do território ucraniano à ocupação da literatura ucraniana. “Eles se ‘apropriaram’ de nossos escritores — (Nikolai) Gógol, (Mikhail) Bulgákov, (Isaac) Bábel — e os chamaram de russos. Agora invadiram nossa terra e querem chamá-la de Rússia.”
No momento, ela está convocando o mundo dos livros a prestar apoio à Ucrânia e encerrar sua colaboração com a Rússia. “Estou falando em barrar os estandes russos nas feiras de livros. Não oferecer fomentos editoriais. E os agentes literários não deveriam mais ceder direitos de textos ucranianos a editores russos. É preciso ignorar os editores russos que afirmam não ter nenhuma ligação com a política. Eles ficaram em silêncio. Eles também são culpados.”
Assim como muitos ucranianos, Antonenko está frustrada porque os avisos prévios dos ucranianos não foram levados a sério. “Estamos dizendo isso há anos.” A própria nação não foi levada a sério: “Surpreendemos o mundo inteiro, mas não surpreendemos a nós mesmos. Fizemos o mundo inteiro respeitar a Ucrânia”.
Ela tem convicção de que a vitória final será ucraniana. “Em poucos dias, nós nos tornamos uma sociedade civil forte. Haverá baixas, mas Putin manchará a imagem da Rússia por gerações, assim como Hitler fez com a da Alemanha. A Ucrânia jamais perdoará a Rússia por esta guerra. Não somos povos ‘irmãos’. Para nós, a Rússia é um eterno inimigo.”
Ela mesma continua editando, fazendo planos e aguardando ansiosamente pelo Festival de Livros Arsenal de maio. O nome do festival vem do antigo edifício em Kiev onde ele ocorre, mas se tornou assombrosamente apropriado no momento em que os ucranianos estão resistindo não só com suas armas, mas também com sua cultura. Antonenko está serenamente confiante. “Com a Ucrânia em nossos corações, venceremos.” (Tradução de Bruno Mattos)
Matéria publicada na edição impressa #56 em fevereiro de 2022.