História,

Enciclopédia de todas as Rússias

De Púchkin a Nabokov, de Tchaikovski a Stravinski, historiador inglês compõe ambicioso mosaico de uma das mais fecundas e contraditórias culturas do mundo

12nov2018 | Edição #5 set.2017

A sucessão de escritores que criou o romance russo no seu “século de ouro”, o 19, está entre as mais prodigiosas da história da literatura. Logo depois de dar ao mundo um poeta inaugural como Púchkin, criador que confere pela primeira vez, como Dante, Camões ou Shakespeare antes dele, plena expressão à própria língua, a Rússia produziu autores exponenciais ao ritmo de um por geração: Gógol, Turguêniev, Dostoiévski, Leskov, Tolstói, Tchekhov.

Seguiu-se, na passagem para o século 20, o breve período que os críticos chamam de “era de prata”, mas que se desdobraria numa série quase tão impressionante de prosadores: Górki, Bábel, Nabokov, Pasternak (Maiakóvski e Akhmátova escreveram sobretudo poesia). Seja na crítica oblíqua ao absolutismo czarista (da qual se deveria excluir, em parte, Gógol e Dostoiévski, reacionários ostensivos), seja na resistência ao totalitarismo comunista (aqui Górki seria a relutante exceção), é uma literatura galvanizada pelo debate, sempre implícito, de questões sociais e políticas. Sob impacto do atraso histórico e das profundas iniquidades da sociedade russa, foi desde cedo também uma literatura que ganhou vulto conforme se deixava tomar por preocupações morais e filosóficas.

Em ensaios escritos entre as décadas de 1950 e 1970 e reunidos no volume Pensadores russos, Isaiah Berlin ressaltou como a severidade da repressão praticada pela autocracia czarista compeliu o debate de ideias, impedido de transcorrer às claras, a escoar pela circulação literária, que assim se adensava. 

Até a invasão napoleônica, em 1812, a Rússia era um país secundário na geopolítica europeia. Foi a vitória heroica sobre o invasor francês, repelido pelo inverno e pela tenacidade da resistência popular após haver penetrado até Moscou, que garantiu à Rússia status de potência mundial e deu origem à onda de autodescoberta nacionalista. Na aristocracia, deixou-se de falar tanto francês como antes e adotaram-se maneiras mais próximas do despojamento dos camponeses, cujo patriotismo fora exemplar na derrota dos invasores. A língua literária de Púchkin, ágil, direta, coloquial, reflete esse sopro vivificador.

Sobreveio então o trauma de dezembro de 1825. Algumas das personalidades mais influentes do império apareciam implicadas numa conspiração liberal contra o czar. Violenta repressão se abateu sobre o complô abortado, cujos líderes foram executados ou exilados na Sibéria. Fechavam-se as portas para uma reforma da autocracia.

O pensamento russo foi dilacerado pelo confronto entre ocidentalistas e eslavófilos

A Rússia sempre fora uma nação dilacerada entre Europa e Ásia. A partir dos anos 1840, o debate de ideias deu forma a essa dicotomia. Opunha ocidentalistas, que preconizavam um programa de reformas liberais (ou socialistas, a partir de meados do século) na esteira do progresso das nações europeias, a eslavófilos, adeptos de um caminho original, derivado das tradições do campesinato, que permitiria saltar a etapa capitalista num rumo utópico que evitasse o materialismo egoístico do Ocidente.

Quem sacudiu a pequena elite letrada e deflagrou essa explosão de autoconsciência foi um crítico visionário, irascível e ardente, Vissarion Bielínski, que morreu cedo, aos 37 anos, em 1848, mas exerceu influência duradoura. O programa de Bielínski era exortar a uma literatura que aliasse denúncia social e qualidade artística. Revelou Gógol, Turguêniev e Dostoiévski, além de explicar a transcendência de Púchkin aos russos. Pouco antes de morrer, escreveu uma célebre carta a Gógol em que condenava as posições retrógradas do escritor nos termos mais eloquentes. Ter lido essa carta numa reunião clandestina em 1849 foi o que levou Dostoiévski a ser preso e, após a simulação de fuzilamento, enviado à Sibéria, de onde retornou convertido ao misticismo conservador.

A partir da década de 1850, romances, contos e peças teatrais se enchem de “homens supérfluos”, literatos que não encontravam lugar numa sociedade atrasada e brutal. São figuras carismáticas, mas inconsequentes, como Rúdin, que dá título a uma novela de Turguêniev, ou cômicas, como Oblómov, protagonista do romance de Goncharov que concatena planos formidáveis sem conseguir levantar-se da cama para executá-los. Eles ressoam na inatividade melancólica das personagens de Tchekhov.

Os anos 1860-70 viram surgir uma reação enérgica a essa complacência. A libertação dos servos (1861), concedida sem reforma agrária e conforme as conveniências da nobreza proprietária de terras, acarretou pouca mudança no panorama social. Uma das instituições seculares da Rússia eram as comunas, trechos de terra que pertenciam coletivamente aos camponeses da aldeia e cujo uso se redistribuía em assembleia de tempos em tempos conforme as necessidades das famílias. Escritor panfletário e radical, Nicolai Tchernichevski elaborou, no livro Que fazer? (1863, título depois parodiado por Lênin), uma tese que faria longa carreira, a de que a comuna abrigava a matriz de uma futura sociedade socialista camponesa. Essas ideias impulsionaram a “ida ao povo”, movimento de ativistas e intelectuais que, em meados dos anos 1870, passaram a viver no campo lado a lado com os lavradores. Foram rejeitados, às vezes denunciados à polícia pelos beneficiários de sua solidariedade.

Convencida de que o campesinato estava atolado no obscurantismo, parte do movimento populista aderiu a métodos terroristas, convertendo-se na Vontade do Povo, organização clandestina que assassinou o czar Alexandre 2º em 1881. Depois chamados de socialistas-revolucionários, os populistas predominaram na oposição radical ao czarismo durante a revolução de 1905 e até meados de 1917, quando foram suplantados e assimilados (e em parte exterminados) pelos bolcheviques, que se filiavam a outra tradição insurrecional, a marxista. Mas o partido leninista, composto por revolucionários profissionais, treinados nos rigores da clandestinidade, é invenção dos populistas russos, reconstituída de maneira obsessiva no romance Os demônios (1872), de Dostoiévski.

Duas Rússias

Todo o percurso sumariado aqui, e muito mais, aparece na extensão ciclópica de Uma história cultural da Rússia, do historiador britânico Orlando Figes, publicada em 2002 e lançada agora pela Record no que parece uma tradução competente de Maria Beatriz de Medina. Professor no Birkbeck College, da Universidade de Londres, Figes é um destacado estudioso da história russa. Seu livro mais conhecido é A tragédia de um povo — A Revolução Russa 1891-1924, editado em inglês em 1996, amplo panorama da substituição da autocracia czarista pela stalinista que mereceu acolhida crítica muito favorável. 

Naquele livro, Figes adota como método narrativo acompanhar os principais lances biográficos de certos personagens, escolhidos menos pelo protagonismo, que muitos nem desempenharam, e mais por encarnarem aspectos da vida social que ele deseja iluminar. O mesmo método, entremeado de citações literárias e referências a outras obras de arte, é empregado nesta vasta compilação da cultura russa, que vai da cristianização (final da década de 980) até o crepúsculo do regime soviético.

O eixo que estrutura o livro é a dicotomia habitual entre duas Rússias, uma civilizada e europeia, outra camponesa e asiática. O vínculo secreto entre ambas é simbolizado pela cena do épico Guerra e paz (1869), de Tolstói, em que a heroína Natacha, jovem aristocrata, ao entrar numa choupana onde se toca música camponesa, passa a dançar tão bem quanto uma aldeã, como se aquela habilidade estivesse magicamente inscrita nela (daí o livro de Figes se chamar em inglês Natasha’s Dance; o título brasileiro é o subtítulo original). 

Mais promissora, na ilustração desse dualismo, é a oposição desenvolvida entre a capital, São Petersburgo, cidade de “água, pedra e céu” fundada por Pedro 1º em 1703, e Moscou, o venerando berço do reino, denominada Terceira Roma após a conquista de Constantinopla pelos turcos (em 1453, quando os imperadores russos incorporaram o título de czar (césar).

Construída no delta do Neva, em região pantanosa e castigada por intempéries gélidas, São Petersburgo — “janela para a Europa”, na expressão de Púchkin — refletia a vontade implacável de Pedro e, mais tarde, de Catarina 2ª, de civilizar à força o reino semibárbaro. Tornou-se o símbolo fantasmagórico dessa artificialidade, estampada, como diz Figes, em sua “arquitetura cenográfica” flutuando sobre a linha-d’água. Moscou, ao contrário, corresponde a uma Rússia telúrica, atávica e profundamente cristã, a secretar um folclore que se plasmou no colorido feérico das cúpulas em formato acebolado — “bulbosas”, escreve o autor — de suas catedrais orientalizantes.

Não são raras as percepções reveladoras neste livro, como a de que o cristianismo ortodoxo, ao contrário do católico e do protestante, não procura conciliar fé e razão e pouco se ocupa de debates teológicos (o clero russo, diferente do ocidental, versado em latim, não sabia grego, e até 1870 não existia tradução russa da Bíblia!). Os atos religiosos são concebidos como experiência emocional em que o importante é a observância da liturgia. A principal insurreição contra Pedro 1º, a revolta dos Streltsy (1689-98), como era chamado o corpo de mosqueteiros, tinha por pretexto inovações introduzidas pelo czar reformista no rito ortodoxo. Em outro momento persuasivo, Figes argumenta que a ideologia da Revolução Russa foi menos tributária de Marx que dos tradicionais postulados cristãos de que a propriedade é suspeita, o acúmulo de riquezas é imoral e a pobreza, virtuosa, tal como atualizados pela propaganda populista a partir da década de 1870.

Fazendo jus ao título enciclopédico, o livro não se atém à história intelectual ou literária, mas avança pelas artes e ofícios afora. A lista de compositores russos é imponente (Tchaikovski, Mússorgski, Stravinski, Prokófiev, Chostakovitch, Rachmaninoff, para mencionar os mais influentes), e Orlando Figes é um notório apreciador de música e dança, de modo que suas passagens a respeito estão entre as mais inspiradas. Proveitosa, também, é a seção em que se desenrola um panorama evolutivo das artes plásticas, desde a geração dos “itinerantes”, pintores realistas que romperam com o academicismo no contexto do movimento de “ida ao povo” nos 1870, até a irrupção da arte abstrata de Maliévitch e Kandinski, na segunda década do século 20. Na música como na pintura, fica estabelecido como foi que uma base convencional de técnica artística europeia evoluiu depressa, conforme se abria ao vigoroso influxo “primitivo” de fontes folclóricas, até resultar numa revolução formal que significou a aurora da arte moderna.

Não são raras as percepções reveladoras neste livro, como a de que o cristianismo ortodoxo não concilia fé e razão nem se ocupa de teologia

Algo parecido se pode dizer do capítulo sobre cinema. A invenção da montagem é ali atribuída a Lev Kulechóv, que reutiliza pedaços de películas já filmadas devido à escassez de filme na Guerra Civil (1918-22), tendo exercido influência decisiva sobre o cinema de Eisenstein. Os laços remotos do cinema soviético com o Teatro de Arte de Moscou se tornam visíveis no elo representado por Meyerhold, discípulo de Stanislávski.

Faz parte do método de Figes promover incursões antropológicas sempre que surge ocasião: os ícones de madeira pintada, o pão de centeio, os rituais de casamento, a dacha, a caçada que iguala nobre e servo pelo lapso de uma manhã, os três “médicos do camponês” (sauna, vodca e alho) — tópicos assim ensejam digressões carregadas de curiosidades. A matrioska, série de bonecas encapsuladas uma na outra, é imitação de um brinquedo japonês. Tolstói perdeu a casa principal da fazenda familiar de Iásnaia Poliana na mesa de jogo. Na primeira vez em que se viram, Chostakovitch (colaborador do regime soviético) e Stravinsky (exilado havia décadas) encontraram assunto ao falar mal da música de Puccini.

A imensidão dos temas, porém, mesmo num volume extenso, obriga a abordá-los de passagem. A fórmula narrativa propicia uma leitura fluente, mas tolhe as ambições analíticas do livro, que também se presta mal a consultas pontuais, dado que um mesmo assunto reaparece em diferentes passagens. Temos às vezes a sensação de que o autor é um guia turístico que nos arrasta às pressas pelos salões intermináveis de um museu que ele tem a obrigação de percorrer inteiro. Pode-se concluir a leitura com um sentimento contraditório de insuficiência e saturação.

Território continental, economia agroexportadora, abolição tardia e insatisfatória do trabalho servil, misticismo religioso, industrialização retardatária: as semelhanças com o Brasil saltam à vista, reiteradas pela distância entre a miragem europeia e o magma da autenticidade popular, num abismo vivido como impotência por intelectuais “supérfluos”. Também não faltaram, na história intelectual brasileira, tentativas de discernir no atraso o atalho que conduziria, num passe de mágica dialética, diretamente ao futuro: a antropofagia de Oswald de Andrade é apenas a mais explícita delas.

Mas as diferenças não são menores. A Rússia foi moldada por choques tectônicos na forma de guerras e invasões tremendas, enquanto o Brasil teve evolução muito menos acidentada. Certo balanço entre elites regionais, resultado de ciclos econômicos sucessivos, terá produzido no Brasil um germe de democracia já presente no liberal-escravismo do Império, enquanto a consolidação russa dependeu da concentração de poder absoluto, que ainda perdura. A condição atual dos dois países é mostra suficiente das limitações das doutrinas que pregavam atalhos para o futuro.

Desde 2010, resenhas sobre Orlando Figes têm de mencionar um episódio embaraçoso. Naquele ano apareceram no site britânico da Amazon comentários em que suas obras eram enaltecidas e outras, publicadas por colegas de especialidade como Robert Service e Rachel Polonsky, tachadas de “pretensiosas” ou “pavorosas”. Logo se levantou a suspeita de que o autor das apreciações fosse o próprio Figes, pois estranhamente os pseudônimos adotados o sugeriam. Depois de seu advogado atribuir a autoria à mulher com quem o pesquisador é casado, Figes pediu desculpas e assumiu a responsabilidade pelos comentários. Julgue o leitor a natureza de seu comportamento, que não afeta, na opinião deste resenhista, sua dimensão como historiador.

Quem escreveu esse texto

Otavio Frias Filho

foi diretor de Redação da Folha, diretor editorial do Grupo Folha e membro do Conselho Fundador da revista Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #5 set.2017 em junho de 2018.