Direitos Humanos,
David Baddiel e o novo antissemitismo
O escritor e comediante britânico, que participa do 2º Festival Literário do Museu Judaico de São Paulo, diz que discriminação contra judeus não se reduz à crise no Oriente Médio
30nov2023 | Edição #76“Estou sentindo um pouco de vergonha”, diz David Baddiel ao admitir que nunca visitou o Brasil antes. “Na verdade, é minha primeira vez na América do Sul”. Em seu primeiro contato com paisagem paulistana, o escritor e comediante britânico confessa ter ficado impressionado com o tamanho da cidade, onde participa nesta quinta-feira (30) da abertura do FliMUJ, o Festival Literário do Museu Judaico de São Paulo, na mesa “Quem se lembra dos judeus?”.
Uma personalidade da TV britânica, na qual construiu sólida carreira como ator e apresentador de programas de comédia nos anos 90, Baddiel deixou o stand-up de lado por cerca de dez anos para escrever desde romances e livros infantis a análises sobre a obra de autores como David Foster Wallace, Philip Roth e John Updike.
Enveredou pelo teatro, fez um longa-metragem de ficção sobre um muçulmano que descobre que nasceu judeu e, nos últimos anos, assumiu o manto de polemista depois de publicar Judeus não contam (Avis Rara, trad. Roberta Sartori), que aponta o dedo para o antissemitismo como expressão do racismo nos meios de comunicação, no esporte e na esquerda progressista.
Recém-lançado no Brasil, o livro se tornou um sucesso de vendas, foi adaptado para um documentário e abriu as portas para outra incursão num tema espinhoso, a crença em Deus. Ainda sem edição no Brasil, The God desire (O Desejo de Deus, em tradução livre) parte do ateísmo do autor — que se define como “ateu militante” — e desafia a visão de pensadores ligados ao Novo Ateísmo, corrente que reuniu nomes como Richard Dawkins, Sam Harris, and Christopher Hitchens.
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Nesta entrevista, Baddiel fala de seu pensamento sobre o antissemitismo, sua visão sobre o conflito entre Israel e o Hamas, e de como a tradição judaica influenciou suas ideias sobre a crença humana em Deus.
Judeus não contam argumenta que o antissemitismo não é mera intolerância religiosa, mas uma forma de racismo. Quando percebeu que essa era uma discussão necessária?
Eu vinha conversando sobre essa nova onda de antissemitismo há muito tempo, e tem a ver com o futebol. Vivenciei no Chelsea, o time pelo qual torço, cantos antissemitas. A história toda é complicada, mas, essencialmente, há um tipo de canto antissemita no Chelsea, no Arsenal e em outros clubes de Londres. Em todos os setores do futebol tivemos muitas iniciativas, começando talvez há vinte anos, para acabar com o racismo contra jogadores negros, a homofobia e abusos de vários tipos. Isso estava acontecendo, mas percebi que ninguém estava falando sobre o antissemitismo. E era muito, muito grande. Estamos falando de quarenta mil pessoas cantando “yid”, que é um termo ofensivo para judeus, algo muito extremo.
Escrevi um pouco sobre isso e meu pensamento sobre o assunto foi se expandindo. Percebi que estamos experimentando uma mudança na cultura em geral, em que todos estão mais preocupados com a discriminação, mas os judeus estão sendo deixados para trás e ninguém está falando sobre essa forma de discriminação muito antiga, que a meu ver não tem nada a ver com religião. Tem a ver somente com um tipo de racismo, que está sendo ignorado.
Em 2020, fui convidado a escrever um livro e decidi que iria escrever sobre isso. E a reação foi muito intensa, tanto de pessoas que concordam, que são principalmente judeus, quanto dos que discordam e reagiram às vezes de maneira muito zangada. Também havia na época muito debate sobre antissemitismo na Grã-Bretanha porque o Partido Trabalhista estava sofrendo uma espécie de crise relacionada ao tema, o que provavelmente também catalisou meu desejo de escrever sobre isso.
O livro afirma que há certa cegueira para o antissemitismo entre progressistas ou esquerdistas. De onde vem isso?
Bem, existem diferentes razões, mas acho que vem principalmente de um mito sobre os judeus, de que eles são poderosos e privilegiados, estão confortáveis e não sofrem as mesmas privações que outros grupos minoritários. E da noção de que judeus são brancos. Todas essas coisas emanam da direita, mas se infectaram também na esquerda e são muito difundidas em toda a sociedade.
Hoje, mais do que nunca, a esquerda procura apoiar quem não tem poder. A noção de que os judeus são poderosos significa que eles são ignorados e, em alguns casos, realmente atacados. Obviamente, Israel desempenha um papel nisso. Israel é um tipo de elo muito específico de judeus poderosos que não necessitam de simpatia ou apoio. E também acho que existe uma ideia um tanto falsa de que há apenas um pequeno espaço para alianças e temos que promover alianças só entre negros e a comunidade LGBTQIA+, por exemplo. Dessa forma, não haveria lugar para judeus, mas não vejo assim. Não entendo por que esse espaço deve ser tão limitado ou estreito.
Você mencionou Israel. Depois dos ataques de 7 de outubro, a situação se intensificou para um cerco a Gaza, uma guerra sem precedentes na região e uma crise humanitária. Como foram esses últimos meses para você e outros judeus com quem você teve contato?
Tem sido muito complicado, obviamente, um período de muita ansiedade porque a coisa toda foi muito febril. Em Londres, a reação foi bem intensa. É muito complicado para mim porque parte da minha tese é sobre a maneira pela qual os judeus de todo o mundo são considerados culpados, mas essa é a maneira pela qual o antissemitismo costuma ser reduzido pelos progressistas, que reduzem tudo a Israel. E quando falo sobre antissemitismo, 95% das vezes não estou falando sobre o Oriente Médio. Estou falando sobre uma ideia mítica, quase eterna. A mentalidade antissemita tem na verdade muito pouco a ver com Israel. Mas sempre voltam a isso quase imediatamente. “E Israel? E a Palestina?”.
A resposta é uma forma de reduzir a complexidade do antissemitismo. Foi incomum para mim sentir o que senti, que tinha que dizer algo sobre Israel, porque normalmente meu modus operandi é dizer: não vou falar sobre Israel. Mas senti necessidade de falar e a razão foi por que me perguntei: o que está acontecendo?
O que aconteceu em Israel foi um pogrom [ataque deliberado a judeus], o velho antissemitismo. A minimização disso pela esquerda é parte da dor. Ando falando mais sobre Israel do que normalmente falo, mas estou tentando dizer que o antissemitismo não deve ser prioritariamente sobre o que está acontecendo no Oriente Médio. Isso é redutor para mim.
Israel para mim é só um país estrangeiro. Sou um judeu britânico e não vejo Israel como minha pátria. Não sou antissionista nem sionista. Simplesmente não sinto essa conexão emocional. Mas acho que uma das maneiras pelas quais os judeus são estereotipados é a noção de que todos nós sentimos esse tipo de conexão imensa e intensa com Israel. Essa é apenas mais uma maneira pela qual a complexa humanidade dos judeus é reduzida. Seria racista insistir que o pensamento emocional primário de um muçulmano britânico, por exemplo, é sobre, sei lá, o Paquistão, a Arábia Saudita, ou de onde quer que venha sua ancestralidade.
Como um judeu que é uma figura pública e escreve de um ponto de vista judaico, mas não tradicional, você é frequentemente cobrado a expressar seus pensamentos sobre o povo palestino? Quais são?
É interessante porque acho que não sei o suficiente sobre o Oriente Médio para oferecer uma opinião muito informada. Na verdade, só nos últimos dois meses que li muito sobre o Oriente Médio. Meu lance é: eu sou britânico. Sou judeu, mas realmente não estou muito interessado neste país a quatro mil milhas de distância. Então, só nos últimos meses é que eu poderia dizer que a melhor coisa, me parece, seria mesmo uma solução de dois estados. Acho que se isso pudesse seja lá de que forma dar certo, eu definitivamente apoiaria como alguém que não se sente conectado.
Sim, definitivamente, os palestinos devem ter mais direitos humanos. Acontece que, apesar das pessoas pedirem minha opinião, eu não costumo ter. Israel, Palestina e geopolítica não são a minha praia. O que faço em Judeus não contam é desconstruir a mentalidade antissemita. O que está acontecendo em Israel e na Palestina é um complexo pântano geopolítico e diplomático. Eu sei como isso afeta os judeus e posso falar sobre como isso afeta os judeus, mas não tenho ideia de como essa situação terrível será resolvida.
Seu livro mais recente discute a crença em Deus como uma projeção do desejo humano. Isso significa mais uma necessidade ou uma esperança?
É uma pergunta muito boa. Acho que ambos são igualmente importantes. A esperança é mais consciente, a vontade de que a vida tenha justiça e o Universo algum princípio e significado. Acho que as pessoas religiosas sabem que estão projetando esse desejo e escolhem acreditar em Deus por isso. Mas acho que a necessidade é mais subconsciente, embutida e muito intensa. E isso tem a ver com a morte, principalmente.
Eu digo isso no livro, somos o único animal que tem consciência da morte. E como tal, temos uma necessidade muito intensa de tentar criar algum sentido, qualquer que seja e não só sobre depois da morte, de que nossas vidas têm um significado e estão sendo testemunhadas de alguma forma. Acho que isso é uma necessidade e é mais gritante. Não estamos constantemente cientes disso da maneira que podemos estar cientes da esperança de algum tipo de justiça no mundo ou qualquer outra coisa que Deus forneça.
O que distancia seu pensamento do pensamento de figuras do Novo Ateísmo como Richard Dawkins, Sam Harris e Christopher Hitchens?
Acho que os novos ateus, pelo que li deles, são muito mais desdenhosos da religião do que eu. Sou totalmente ateu, 100%, e sei que algumas pessoas acham isso arrogante, mas vou dizer: eu sei que Deus não existe. Sei que ele é uma projeção do desejo. A diferença do meu livro é que eu acho que se você admitir que Deus é uma projeção do desejo, então é estúpido imaginar que eu não tenha esse desejo.
Obviamente, eu tenho esse desejo. Obviamente, eu adoraria que Deus existisse. Obviamente, tenho medo da morte e das mesmas coisas que as pessoas que têm Deus como uma realidade em suas mentes. Eu tenho todos os mesmos anseios e o livro é uma admissão disso. Portanto, não é aquela coisa de, bem, a religião é um absurdo, é um conto de fadas. Chamar a religião de conto de fadas é não entender o quanto os contos de fadas são importantes, que lendas e mitos explicam muitas vezes o que significa ser humano.
Outra razão pela qual sou diferente deles é que sou judeu, mesmo sendo um ateu completo que não segue o judaísmo. Eu sei o que isso significa em termos de minha identidade. As histórias e as orações fazem parte da minha identidade, mesmo que eu não acredite que tenham significado sobrenatural. Isso é algo que não acho que esses ateus, a maioria dos quais vem de origens cristãs muito severas, possam entender. Você tem que ter uma origem de perseguido para que essas coisas signifiquem algo para você. Então entendo o lirismo e o poder da oração e dos rituais judaicos. E, portanto, entendo como toda religião pode ser poderosa e importante para as pessoas, quer Deus exista ou não.
Matéria publicada na edição impressa #76 em novembro de 2023.
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