Trechos,

Uma mancha feita de sangue

Em ‘Dezessete anos’, a jornalista e escritora francesa Colombe Schneck descreve, em diálogo com Annie Ernaux, a experiência de um aborto; leia trecho

16ago2023 | Edição #73

Uma estudante francesa relembra, em linguagem direta e em detalhes, a experiência de ter abortado após uma gravidez indesejada. A história remete a O acontecimento, relato da também francesa Annie Ernaux, que foi adaptado aos cinemas. E foi exatamente como uma resposta à convocação feita pela Nobel de Literatura que Colombe Schneck resolveu também compartilhar sua experiência. O resultado é Dezessete anos, primeira obra da jornalista e escritora lançada no Brasil, pela editora Relicário.

“Senti como se ela se dirigisse a mim. Eu precisava contar o ocorrido naquela primavera de 1984”, diz Schneck. Vinte anos e muitas diferenças separam a experiência de Ernaux e da sua sucessora: o aborto já não era mais ilegal na França e a autora-narradora, além de contar com boas condições sanitárias, foi acompanhada pelos pais. No entanto, as dúvidas, a angústia e o silêncio em torno de um dos atos mais secretos na vida das mulheres continuava e continua o mesmo. 

O acontecimento de Schneck, como descreve a professora e tradutora Laura Campos no texto de apresentação, “marca sua entrada abrupta no mundo adulto e, sobretudo, a sua tomada de consciência de que a liberdade sem freios da qual supostamente desfrutava não existia, pois era limitada pela condição feminina”. Leia um trecho a seguir.

Trecho de Dezessete anos

Minha mãe não veio à clínica. Nunca falaremos do que aconteceu naquele dia. Nem antes, nem depois.

Eu e minha irmã ainda rimos de quando ela tentou conversar com a gente sobre menstruação. Tínhamos uns dez anos e ela nos interpelou apressada, escondida no vão da porta da cozinha.

— Ah, meninas, vocês sabem o que é menstruação?

Desatamos a rir. Ela pareceu tão desconfortável.

Claro, aprendemos na escola.

Ela fecha a porta, aliviada. Nossa educação sexual termina ali.

Trinta anos depois, na Conferência Internacional do Romance, em Lyon, Pierre Pachet, irmão de minha mãe, lê um trecho de Sem amor, seu último ensaio. O livro retrata mulheres que renunciaram ao amor. Ele fala sobre minha mãe, Hélène, cujo nome passou a ser Irène.

Ele conta como, durante o inverno de 1943, aos onze anos de idade, escondida em um convento, Irène percebe uma mancha vermelha em sua calcinha. O sangue escorreu entre suas pernas, e ela não sabia o que era aquilo. “Imaginava o que fora a apreensão de Irène, a dor, o espanto diante daquela mancha escura — excrementos? Não, devia ser sangue (uma ferida interna, uma doença, a consequência de um erro? Não era cedo demais
para se ter culpa?).”

Estava aterrorizada por tantas coisas, a morte, o sangue, a falta de higiene, o frio. A quem poderia confessar seu terror? A sensação de abandono permanece até a sua morte. Ela relata o episódio apenas para uma amiga muito próxima, que, muito tempo depois, contará a seu irmão.

E ouço isso, o terror de uma garotinha judia de onze anos e meio que pensa que vai morrer, sozinha, escondida no convento, com esse sangue que ela não sabe de onde vem. Tudo se mistura, a obrigação absoluta de se calar sobre sua identidade, a angústia de nunca mais rever seus pais e, agora, a descoberta de seu corpo.

“Algo se rompera do mundo ou dela mesma”, escreve ainda Pierre Pachet sobre minha mãe, a bela Hélène.

***

À noite, meu pai está na clínica. Ele me ajuda a me levantar. Voltamos para casa. A casa de minha mãe.

Sua filha, uma estudante do ensino médio, acaba de abortar. O que ela me diz quando chego? Nada de que eu possa me lembrar. Não me pergunta se tudo correu bem. Não é uma pergunta que se faça depois de um aborto. Não pergunta se estou triste, aliviada, cansada, se chorei. Ela não faz esse tipo de pergunta.

Como toda noite, tomo um banho e vou me deitar.

No dia seguinte, tenho febre, dor na barriga. Gemo, reclamo, não posso ir à festa organizada para comemorar o Bac, o término do ensino médio.

Aos meus amigos da minha idade, que amo e para quem conto tudo, não digo nada. Não ouso. Não escrevo “confessar”, pois não cometi um erro que deveria “confessar”. Não, não quero compartilhar meu sofrimento. Eles não entenderiam, penso que estão no mundo da inocência.

Naquele momento, não disse nada, e depois tampouco, nunca falaria para ninguém. Às vezes, quase digo a palavra, quase compartilho “o aborto” com uma amiga próxima. E logo em seguida desisto. Por que esse silêncio? Por que até mesmo as mulheres se calam?

Tenho vergonha.

Talvez haja algo sujo no aborto? Não vivi nenhuma reprovação, nem de meus pais, nem de Vincent. Ele poderia ter me acusado de não ter prestado atenção, de ter esquecido a pílula, e, no entanto, carrego uma espécie de mancha em mim, feita de sangue, de excrementos, dessa terra que jogamos sobre os caixões. Então, me calo.

Na verdade, uma vez, aos trinta e dois anos, falo dessa mancha a uma mulher que tem dez anos a mais que eu.

Ela se chama Claire Parnet. É a mulher mais inteligente, mais bonita, mais espirituosa que já encontrei. Estou um pouco apaixonada por ela.

Confio-lhe dois segredos que nunca pude compartilhar com ninguém. Meu avô paterno foi cortado em pedaços e colocado numa mala. E eu abortei.

Matéria publicada na edição impressa #73 em agosto de 2023.