Trechos,

A revolução das três Marias

Tatiana Salem Levy descreve o impacto da coletânea ‘Novas cartas portuguesas’, que mudou a vida das mulheres em Portugal e no mundo; leia o prefácio

28fev2024

Escrito em 1971, durante o governo ditatorial chefiado por Marcello Caetano (que substituíra António de Oliveira Salazar em 1968), Novas cartas portuguesas continha 120 textos que expressavam um sentimento de revolta contra o autoritarismo do regime, manifestado na esfera social pelo patriarcalismo e pelo marianismo (que pregava que as mulheres deveriam ser puras e obedientes ao marido). Assinados por três Marias — Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa —, os textos ganham edição brasileira, que será lançada no próximo 8 de março, Dia Internacional da Mulher, pela Todavia.

A coletânea saiu na atmosfera de repressão, em abril de 1972 pela Estúdios Cor, então sob a direção editorial de Natália Correia, que publicou a obra integralmente apesar das pressões do governo. A censura recolheu e destruiu boa parte dos exemplares da primeira edição três dias após o lançamento e instaurou um processo contra as autoras por terem escrito um livro “insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública”. 

Interrogadas pela Pide, a polícia política portuguesa, as autoras recusaram-se a revelar quem havia escrito o quê. O processo provocou uma onda de apoio internacional às “Três Marias”, mobilizando Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Doris Lessing, Christiane Rochefort, Iris Murdoch e Stephen Spender, além de outras intelectuais. O livro foi imediatamente publicado em outros países da Europa e nos Estados Unidos, tornando-se uma das obras portuguesas mais traduzidas em todo o mundo. Apesar disso, o julgamento das escritoras só não foi em frente devido à Revolução dos Cravos, em 1974. 

Leia a seguir o prefácio da edição brasileira, escrito por Tatiana Salem Levy, contextualizando a importância da obra e a repercussão internacional que alcançou.

Corajosas Marias, perigosas Marias

Tatiana Salem Levy

Quando penso em livros portugueses revolucionários, o primeiro título que me vem à mente é Novas cartas portuguesas. Parece-me impossível pensar na Revolução dos Cravos ou em feminismo sem lembrar desta obra assinada por três autoras: Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, posteriormente conhecidas como as “Três Marias”. Para entender seus aspectos transgressores — quando digo transgressores, digo-o tanto na estética quanto na política, aqui indissociáveis —, é preciso contextualizar o país e o tempo nos quais este livro foi criado.

Em 1972, ano de publicação da obra, Portugal vivia ainda sob o jugo do Estado Novo, uma ditadura que se alongava desde 1933, e que teve António de Oliveira Salazar como seu principal mentor e líder. No entanto, quem estava na presidência do Conselho de Ministros já era Marcelo Caetano, que substituiu Salazar após uma queda que o deixaria com sequelas mentais. Mesmo com a mudança governamental, a ditadura seguiria firme — com repressão, prisões de artistas, intelectuais e opositores, censura de livros e obras de arte — até o 25 de abril de 1974, data da Revolução dos Cravos.

Parece-me impossível pensar na Revolução dos Cravos ou em feminismo sem lembrar desta obra assinada por três autoras, posteriormente conhecidas como as ‘Três Marias’

É nesse cenário que um incidente acabaria dando origem a Novas cartas portuguesas, obra que se tornou imprescindível para a compreensão da literatura portuguesa contemporânea. O livro de poemas Minha senhora de mim, de Maria Teresa Horta, havia sido apreendido pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a Pide, por “ofensa da moral tradicional da
nação”. Na sequência, Teresa foi perseguida e espancada na rua por três homens, que lhe advertiram: “É para aprenderes a não escreveres como escreves”. No almoço marcado para o dia seguinte no restaurante Treze, onde as autoras se encontravam semanalmente, Maria Velho da Costa provocou as amigas: “Se uma mulher sozinha causa toda esta confusão, este burburinho, este escândalo, o que aconteceria se fôssemos três?”.

Assim surgiu a ideia de escreverem um livro a seis mãos. Com pouco mais de trinta anos, elas já haviam publicado, individualmente, livros que desafiavam a tradição patriarcal portuguesa com uma escrita subversiva e erótica, contestando os papéis sociais e sexuais esperados das mulheres. Todas as três viriam a ser autoras de vastas obras. Maria Isabel Barreno publicaria mais de vinte livros, entre os quais dez romances; Maria Teresa Horta, a única que permanece viva, tem em torno de quarenta, e Maria Velho da Costa, além de romances, escreveria poesia, contos, crônicas, peças de teatro e roteiros de cinema.

Com pouco mais de trinta anos, as autoras já haviam publicado, individualmente, livros que desafiavam a tradição patriarcal portuguesa com uma escrita subversiva e erótica

Essas grandes mulheres decidiram então, no almoço que se seguiu ao incidente com Teresa, se juntar para dar à literatura uma dimensão coletiva. Pela primeira vez na história portuguesa surgiria um livro assinado por três mulheres. Da epígrafe sobressai o tom provocador que domina as páginas seguintes: “(ou de como Maina Mendes pôs ambas as mãos sobre o corpo e deu um pontapé no cu dos outros legítimos superiores)”. Maina Mendes é um romance de Velho da Costa; Ambas as mãos sobre o corpo, uma narrativa fragmentada de Teresa, e Os outros legítimos superiores, um livro de Isabel. 

Faltava ainda traçar o caminho que dariam à obra coletiva. Como tinham no feminismo e na escrita transgressora seu ponto em comum, depois de alguma discussão pareceu-lhes instigante partir de um diálogo com o célebre romance epistolar Cartas portuguesas, ícone da voz feminina submissa e maltratada pelo patriarcado, publicado pela primeira vez em Paris em 1669. Tudo indica que as cartas que compõem o pequeno volume foram escritas por soror Mariana Alcoforado, escrivã e vigária do Convento de Beja, depois de ter vivido um tórrido caso de amor com o cavaleiro Noel Bouton de Chamilly, capitão de cavalaria que lutou em Portugal durante a Guerra da Restauração.

As cartas de Mariana Alcoforado revelam o desespero de uma mulher atormentada por um amor não correspondido. Intensas, falam de um ponto de vista muito conhecido na literatura portuguesa, pelo menos desde as “cantigas de amigo” medievais: o da mulher que, abandonada, aguarda o ser amado. Não foi à toa, portanto, que as “Três Marias” optaram pela escrita de Novas cartas portuguesas. Novas na autoria, na forma, na contextualização dos papéis da mulher, no tratamento do corpo e do sexo.

Se a autoria de Cartas portuguesas é polêmica e misteriosa — alguns críticos afirmam terem sido escritas pela própria Mariana Alcoforado, outros por Gabriel-Joseph de Guilleragues —, a de Novas cartas é propositadamente coletiva. À exceção da primeira carta, escrita por Maria Isabel Barreno, não sabemos quem escreveu nenhum dos outros textos que compõem o livro. Não há qualquer assinatura individual. Esse foi o combinado entre elas: encontravam-se uma vez por semana para ler os textos, mas jamais diriam quem havia escrito o quê, “engravidando cada uma de cada uma de cada uma”. Para Maria Velho da Costa, o aspecto mais emocionante do processo foi o fato de cada autora experimentar as formas, os pensamentos e os estilos das outras — algo realmente inédito e surpreendente na literatura até os dias de hoje.

A única regra era a liberdade absoluta. Podiam escrever o que quisessem, do jeito que quisessem. E o resultado foi um livro inclassificável, que contém de tudo um pouco: poemas, cartas, ensaios, citações, contos, reunidos numa ordem que segue apenas a cronologia. Os textos são datados, mas não assinados. Também no que diz respeito aos temas, o livro é constituído dessa pluralidade. Embora a ideia central dele seja libertar a mulher das suas clausuras, redefinindo seu papel, tirando-a de um lugar subjugado e passivo, outras lutas também aparecem: a denúncia da guerra colonial, a emigração, o sistema judicial e a repressão. As “Três Marias” entendiam que a luta feminista nunca está separada da luta por outras minorias. Eram muitas décadas de um regime fascista, que agora explodiam num só livro.

As ‘Três Marias’ entendiam que a luta feminista nunca está separada da luta por outras minorias

Gestado na mais extrema liberdade, Novas cartas portuguesas veio ao mundo nove meses depois de ter sido pensado. Antes que a censura recolhesse e destruísse a primeira edição do livro, as reações começaram a chegar. O jornalista e crítico Fernando Assis Pacheco se revelou entusiasmado com uma obra que ele definiu como um “ato de extrema coragem no país das Pimpinelas”. No jornal A Capital, Nuno de Sampayo destacou “a coragem de querer, a coragem de exigir, a coragem de litigar, a coragem de combater”, assim como as pressões machistas que as escritoras portuguesas ainda sofriam na década de 1970.

Depois de apreendidos os exemplares de Novas cartas, foi instaurado um processo contra as autoras, que seriam interrogadas pela polícia dos costumes, acusadas de produzirem material de conteúdo “insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública”. O presidente Marcello Caetano chegou a dizer: “Há aí três mulheres que não são dignas de ser portuguesas”.

As “Três Marias” foram assim parar no banco dos réus, com um processo que o regime não quis tratar como político, e sim moral. Elas seriam punidas por terem sido corajosas demais, perigosas demais. O mesmo inspetor que interrogava as prostitutas iria interrogar as três escritoras e, como disse Maria Teresa Horta, “ele só tinha ordem para a humilhação, a castração, a intimidação, por parte do governo, obviamente”.

Não há nada pior para o orgulho de um governo fascista do que aparecer de forma negativa nas páginas dos principais jornais mundiais. E foi o que acabou acontecendo quando o caso das “Três Marias” percorreu protestos de Boston a Paris. Tudo começou quando um amigo de Maria Isabel Barreno levou exemplares do livro para Simone de Beauvoir, Marguerite Duras e Christiane Rochefort, que promoveram várias ações, incluindo um abaixo-assinado entregue na Embaixada de Portugal em Paris, logo após a Conferência Internacional da National Organization of Women (now), que aconteceu em Boston em junho de 1973. Foi nessa conferência que a causa das escritoras portuguesas foi chamada de “a primeira causa feminista internacional”.

Em janeiro de 1974, Simone de Beauvoir organizou uma “procissão de velas” em torno da Notre-Dame em defesa das três. Meses antes, em outubro de 1973, havia sido realizada uma leitura-espetáculo, La nuit des femmes, em que várias mulheres leram trechos do livro. Tantas manifestações de apoio levaram a uma repercussão inesperada, culminando na cobertura do julgamento por alguns dos principais jornais internacionais, como New York Times, Le Monde, Libération, entre outros. Com tamanha repercussão, Novas cartas se tornou uma das obras portuguesas mais traduzidas de todos os tempos, embora tenha encontrado bastante resistência dos leitores em seu país.

Com tamanha repercussão, ‘Novas cartas’ se tornou uma das obras portuguesas mais traduzidas de todos os tempos

Como atestam Ana Luísa Amaral e Marinela Freitas no artigo “Da ‘exposição de meninas na roda’: a recepção em Portugal de Novas cartas portuguesas”, um enorme silêncio se abateu em torno do livro nas décadas seguintes. “Subversivo antes da Revolução, o livro passaria a ser um incômodo para os setores mais conservadores no pós-25 de Abril”, afirma Amaral. Foram poucos os estudos nos anos posteriores. Só no nosso século surgiu um novo interesse pela obra, com os textos fundamentais de Maria Alzira Seixo (“Quatro razões para reler Novas cartas portuguesas”) e de Ana Luísa Amaral (“Desconstruindo identidades: Ler Novas cartas portuguesas à luz da teoria queer”). A partir daí, apareceriam muitos estudos, ligados sobretudo aos estudos feministas e aos estudos de gênero.

De volta à década de 1970, o julgamento terminou por ser adiado, e a sentença veio alguns dias depois do 25 de Abril, tendo sido determinada a absolvição de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. O juiz Acácio Lopes Cardoso concluiu: “O livro não é pornográfico nem imoral. Pelo contrário: é obra de arte, de elevado nível na sequência de outros que as autoras já produziram”. Era a democracia chegando. Com ela, uma constituição que pela primeira vez instituía a igualdade de direitos de todos os cidadãos, sem distinção de sexo, raça e religião — e a compreensão de que a arte é o espaço da liberdade.

Se há livro que nos faz entender como essa liberdade conjuga experiência estética e política — em qualquer lugar do mundo, em qualquer tempo — é este, que temos agora a sorte de poder ler.