Trechos,

A escrita como faca de Annie Ernaux

Lançamento promove mergulho no pensamento da escritora que revolucionou o modo de contar a própria história; leia trecho

16nov2023 | Edição #75

Nos últimos anos, os leitores brasileiros conheceram muito sobre a vida e a obra de Annie Ernaux, a escritora francesa que promoveu uma transformação na maneira de narrar a própria história. A escrita como faca e outros textos, novo lançamento da editora Fósforo com tradução de Mariana Delfini, dá a conhecer agora um pouco mais do pensamento da Nobel de Literatura.

O volume reúne “Vingar minha raça”, discurso proferido pela autora ao receber o Nobel em 2022; “A escrita como faca”, entrevista concedida ao longo de meses ao escritor francês Frédéric-Yves Jeannet em 2003 e “Retorno a Yvetot”, conferência dada em 2012 por Ernaux na pequena cidade onde viveu com os pais na infância e adolescência. Leia a seguir, um trecho da entrevista:


 

Frédéric-Yves Jeannet
Neste momento, você tem sido vilipendiada por alguns jornalistas (majoritariamente homens). Como você reage a esse “julgamento de intenção”, a esses ultrajes e a essa espécie de “caça à bruxa”? Você acha que toca em tabus em seus livros mais recentes? Em seu ponto de vista, existe transgressão, e do quê?

Annie Ernaux
É verdade que, primeiro insidiosamente, na época da publicação de O lugar, depois abertamente, com Paixão simples, críticos em sua maioria parisienses e homens, ocupando posições de poder na imprensa, se enfureceram com o que escrevo. Com o conteúdo e a forma. Sou criticada por uma obscenidade dupla, social e sexual. Social porque, em livros como O lugar, Une Femme, A vergonha, mas também Journal du dehors, transformo em material de escrita a desigualdade de condições, de cultura, evitando o populismo, que seria tão reconfortante, aceitável… Sexual porque, em Paixão simples, que foi um barril de pólvora, descrevi tranquila e minuciosamente a paixão de uma mulher madura — vivida no registro adolescente e do “romance”, mas também muito físico — sem as marcas afetivas, a lamentação, sem esse “romanceamento” que justamente se espera daquilo que é escrito por mulheres. Ainda por cima, uma transgressão de gênero: trata-se de um relato autobiográfico, mas que se debruça sobre um período muito curto, redigido de maneira clínica. Fui chamada de “mocinha”; meu livro, de “água com açúcar, à altura do folhetim Nous Deux”, o que é bastante revelador: trata-se aqui de uma estigmatização dupla, me mandam de volta para a classe e a literatura populares e, ao mesmo tempo, para onde eu pertenço em termos sexuais. (A propósito, repare que tais frases foram ditas por pessoas que se dizem de esquerda e que, assim, revelam seu secreto desprezo de classe.) Acho que um pequeno número de críticos não me perdoa por isso, pela minha maneira de escrever sobre o social e o sexual, por não respeitar uma espécie de decoro intelectual, artístico, ao misturar a linguagem do corpo e a reflexão sobre a escrita, ao ter interesse tanto pelos hipermercados e pelo trem quanto pela biblioteca da Sorbonne. Isso os agride…

Os ataques se tornam cada vez mais sexistas, o que é muito corriqueiro na sociedade francesa. Nunca leremos a respeito de um livro escrito por um homem o que às vezes leio sobre livros escritos por mulheres, sobre os meus. Do mesmo modo, na imprensa não se chama um escritor do sexo masculino apenas por seu primeiro nome, como frequentemente fazem em relação a mim.

Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.