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Literatura, uma atividade de risco

Cristovão Tezza reflete sobre mudanças de comportamento e de linguagem em posfácio inédito de ‘Ensaio da Paixão’, romance com traços autobiográficos que será relançado; leia trecho

29fev2024

“Nunca releia um livro que você escreveu há mais de quarenta anos”, escreve Cristovão Tezza na abertura do posfácio da nova edição de Ensaio da Paixão. O romance, publicado pela primeira vez em 1985, estava fora de catálogo e será relançado em 3 de junho pela editora Record. No texto inédito, cedido com exclusividade à Quatro Cinco Um, o premiado romancista catarinense reflete sobre as mudanças de comportamento e de linguagem que influenciam a literatura.

“Uma atividade de risco, um ato de existência e um território livre; ela [a literatura] tem de ser um território livre para fazer sentido. E esse ‘livre’ sente alergia congênita a adjetivos e adversativas”, escreve.

Com fortes traços autobiográficos, Ensaio da Paixão é inspirado no período de oito anos, de 1968 a 1976, em que o autor participou de uma comunidade de teatro no litoral do Paraná, sob a liderança do escritor W. Rio Apa (1925-2016), um guru que transformou sua família e seguidores numa trupe de atores. A experiência comunitária se encerrou na segunda metade da década de 70, quando o projeto teatral se concentrou inteiro numa encenação anual da Paixão de Cristo. Como pano de fundo da história, a ditadura militar, uma sombra sobre tudo que se produziu no Brasil naqueles anos. Leia o posfácio de Cristovão Tezza:

Uma história pessoal

Posfácio

Nunca releia um livro que você escreveu há mais de quarenta anos, disse brincando para mim mesmo quando comecei a preparar esta nova edição para a Editora Record. O problema não é a sombra da insegurança de quem escreve, que imagino ser um sentimento permanente em todo escritor, ainda mais revisitando um livro de juventude; também não é deparar com aquele narrador em formação. A verdadeira dificuldade é enfrentar a pessoa que estava lá, vendo o mundo e a si mesmo e avaliando-os pela razão e pelo instinto, para descobrir e representar o que parecia realidade, criando duplos hipotéticos que, no minuto seguinte, transformam-se em outra coisa e respiram com vida própria. Nesse terreno, a psicanálise talvez acabe sendo mais útil que a pura crítica formal, e certamente mais que a mecânica sociológica. Como posso “me revisar”?

O primeiro susto deste leitor ao espelho é da percepção, quase que auditiva, da violência de formas, palavras, intenções e percepções (morais, sexuais, sociais, raciais, de gênero) de um universo de sentidos que, hoje, praticamente saiu de cena por força de um consenso poderoso que já opera em silêncio. Nada de novo: é o que acontece com os quadros mentais e culturais, em perpétua mutação; a partir de conflitos vivos e turbulentos disparados por novas variáveis da cultura, os sentidos vão se sedimentando e criando uma nova normalidade, por assim dizer, que se espraia firmemente em todas as instâncias de sua manutenção, em suas bolhas e estamentos específicos (internet, imprensa, escola, igreja, família etc.). A palavra, é claro, terá aí um papel crucial, o que afeta, também claramente, a sua (quem sabe, ou quem dera) mais prestigiosa subsidiária, o estatuto da literatura. Um estatuto que, sem perder a pressão hereditária, sempre presente, nunca é o mesmo de século em século.

Hoje, no Brasil e no mundo, de uma forma que me parece já dominante, este estatuto literário ganhou os traços controladores de um empreendimento político-moral coletivo de natureza didática. De fato, esta não é nenhuma forma nova de se entender a literatura; basta lembrar o milênio da literatura medieval na matriz ocidental, que funcionava basicamente com os mesmos parâmetros (embora com outros valores), o que não impediu o surgimento de obras duradouras e transcendentes, pelo poder da linguagem individual de contestar e destruir os modelos e ideários coletivos de origem. É só um pequeno exemplo de uma história sem fim.

Vou me ater à minha história pessoal de escritor, começando justamente pela natureza didática a que fiz referência acima. A ideia de literatura como “material didático”, como instrumento de doutrina e ensino exemplar, é antiga como a Bíblia, e vai e volta sob diferentes roupagens ao sabor de contingências históricas e pressões culturais. Pois bem, este ideário em que a literatura será, em primeira e última instância, um atributo de controle de Estado (ou da religião, ou da pátria, ou da identidade, ou qualquer valor abstrato ou moral que aí se delimite), era estranho para mim e, provavelmente, para a maior parte da minha geração, que nasceu na década de 1950 e amadureceu nos anos 1960 e 1970.¹

Continuo pensando assim: material didático é parte fundamental do processo civilizatório formal, as escolhas regulares da educação, objetivamente estabelecidas para desenvolver competências intelectuais, éticas e culturais. Nada contra o modelo: todas as sociedades precisam discutir, estabelecer e enfim impor os seus projetos educacionais, que imaginam o melhor para a formação de seus futuros cidadãos. É uma escolha objetiva que se faz.

A questão central é que literatura — como atividade adulta — não é material didático. A sua força está na direção contrária: a literatura expressa uma voz individual, única, intransferível, e é exatamente nisso que reside seu interesse; é por natureza uma atividade individualista, realizada sobre a matéria bruta, e social, da linguagem. Fazendo uma metáfora com um toque de exagero, ela é uma experiência pessoal destinada não a ensinar o que o autor sabe, mas para ele mesmo descobrir, pela escrita, o que ainda não sabe, e eventualmente partilhar com o leitor. É uma atividade de risco, um ato de existência e um território livre; ela tem de ser um território livre para fazer sentido. E esse “livre” sente alergia congênita a adjetivos e adversativas.

‘A literatura é uma atividade de risco, um ato de existência e um território livre; ela tem de ser um território livre para fazer sentido’

Vivi o primeiro choque nessa área quando, em 1979, foi publicado meu romance de estreia (que eu imaginava “adulto” mas que foi publicado com o selo na orelha indicando adequação a partir da 7ª série, o que irritou bastante a pretensão do jovem autor). Seis meses depois, o editor me escreveu dizendo que, para a segunda edição, eu teria de cortar um trecho com uma cena de sexo porque as professoras estavam reclamando. Furioso pela intromissão, eu recusei e, para felicidade geral (o livro era mesmo ruim), a novelinha morreu para sempre.

Era algo novo que havia surgido naquela década e que se tornaria padrão no país: produção de literatura juvenil destinada objetivamente à escola, o que passou a ser uma área comercial pujante para as editoras e uma possibilidade de trabalho importante para os autores. Também nada tenho contra a literatura paradidática, mas foi uma área que, por acaso e circunstâncias, nunca me atraiu. O que não impediu a inclusão de livros meus (até onde sei, Trapo, Uma noite em Curitiba, O filho eterno, Juliano Pavollini, A tensão superficial do tempo e mesmo — o que é surpreendente — este Ensaio da Paixão) em uma ou outra lista de vestibulares, a compra deste ou daquele título por programas oficiais de governo e a adoção eventual por colégios e professores de romances meus para leitura e discussão.

Vivi também a experiência inversa: sob ameaças de processos e acusações de imoralidade, livros meus foram excluídos de sala de aula (às vezes com sanções aos professores que os indicaram), de escolas, ou mesmo de um Estado inteiro (Santa Catarina recolheu todos os exemplares adquiridos oficialmente do romance Aventuras provisórias, atendendo à reclamação de uma pedagoga que chegou às “redes sociais” e desencadeou uma fúria coletiva).

Na verdade, isso nunca me incomodou muito, porque, desde o primeiro trauma nessa área, sempre soube a diferença entre literatura e material didático.  Cheguei a escrever uma crônica provocativa com o título de “Não me adotem”. Passei anos produzindo material didático na universidade, nos meus tempos de professor, e entendo perfeitamente a diferença entre uma coisa e outra. Seria o fim da picada, ou simplesmente ridículo, pretender definir o estatuto da literatura, ou até mesmo estabelecer seu cânone, a partir de uma “lista de vestibular” (é incrível: no Brasil algumas pessoas estão levando isso a sério).

É esta questão que me motivou a escrever este posfácio, a partir da releitura do livro. Ensaio da Paixão é um romance que parece não trabalhar com nenhum valor positivo, nenhuma referência sólida de valor moral; praticamente todos os personagens são figuras emocionalmente torturadas, infelizes, e quase todos mentem e enganam — ou então são ingênuos à beira da caricatura e da estupidez. O resultado, entretanto, não é um sentimento de tragédia (imagino que não haja nada mais avesso ao ethos brasileiro que o sentido trágico da vida), mas a explosão do riso e da gargalhada. Há um tom farsesco quase que permanente, um humor anárquico, às vezes cínico, com frequência violento e abusivo; ninguém ali é modelo de nada; é difícil extrair uma ética ou uma mensagem edificante dos personagens, ainda que os vilões — os militares, em particular o capitão Moreira, ou a figura esdrúxula de Barros — sejam bastante nítidos. Há o pano de fundo da ditadura militar, que é o subtexto da época em que se passa a história (1971). Praticamente tudo que se produziu no Brasil naqueles anos teria a sombra da ditadura. Os militares foram durante duas décadas os do bolsonarismo, meio século depois, a velha caricatura, ainda mais encarquilhada, se tornará poder, e com forte apoio popular). Mas no livro há pouca determinação ou vilões coletivos do país (no discurso urbano-letrado dominante; com a ascensão precisão históricas, pois quase tudo é inverossímil; o romance é dominado por uma aura de realismo aqui e ali mágico (criada por um narrador indeciso de seu registro), um realismo que também era um índice corrente do imaginário daquele tempo.

‘Há o pano de fundo da ditadura militar, que é o subtexto da época em que se passa a história (1971). Praticamente tudo que se produziu no Brasil naqueles anos teria a sombra da ditadura’

Sabendo disso, fiquei atento nesta revisão ao que seria (a expressão, de tão velha, não significa mais nada, mas vá lá) “politicamente incorreto”. De certa forma,  absorvendo o espírito do tempo, estava com temor da releitura, como quem pode descobrir nesta atividade inocente algum lado sinistro da pessoa que um dia eu fui — a linguagem não engana nunca. Na percepção feminista, eu me absolvi, auto-indulgente: muitas mulheres do livro são personagens fortes e independentes, com plena consciência da questão feminina, repercutindo uma novidade explosiva daqueles anos de um Brasil ainda mal saído da vida rural.

Já na questão racial, o livro segue o padrão corrente da classe média letrada brasileira, do maior ao menor escritor — é branco, ou tendendo ao branco. Mas tem referências ao racismo (que ainda não se dizia “estrutural”) e a presença forte de Mírian, uma personagem importante, que é “mulata” — a palavra hoje banida era de uso comum, inclusive com tonalidade neutra; a tonalidade “positiva”, ou afetiva, era quase sempre sexualizada. Já a palavra “parda”, de uso oficial e popular recente, não aparece no livro.² A percepção mais preconceituosa do olhar de alguns personagens, sob o domínio do narrador, é a dos gays — uma palavra, aliás, que também não se usava. A homossexualidade (que se dizia “homossexualismo”), que no romance, por reprodução anedótica de um lugar comum, concentra-se no comportamento dos atores profissionais, é objeto de estranheza e mesmo de agressão (sempre a partir do olhar de personagens, e não do narrador); o ambiente da história mimetiza comportamentos reais da sociedade brasileira, às vezes num naturalismo simples e bruto, mas em alguns momentos a questão afetiva gay é (ainda que superficialmente) discutida e problematizada.

Tudo considerado, a pergunta do escritor que sou hoje é: devo “me revisar”? Purificar o livro das marcas do tempo — que, afinal, são as minhas marcas? Adequá-lo ao espírito identitário contemporâneo?

Antes de responder, vão duas palavras sobre a gênese deste romance e seu elemento autobiográfico. E também duas palavras sobre o ideário artístico que me movia. É algo em que penso sempre, nessa eterna volta à infância que a literatura provoca.

Durante oito anos, de 1968 a 1976, vivi a experiência marcante de participar no litoral do Paraná de uma comunidade de teatro sob a liderança do escritor W. Rio Apa (1925-2016), um guru rousseauniano que ampliou a própria família transformando-a inteira numa trupe de atores, para o bem e para o mal. Muito da minha apreensão do mundo artístico e literário veio da experiência profunda desses anos de passagem, em que eu secretariava o carismático “velho barbudo” e bebia suas palavras, para mim sempre sábias, com a devoção e a lealdade de um aprendiz oriental. Há um dado psicanalítico que merece referência: quando meu pai morreu, eu tinha 6 anos de idade, e, nos anos seguintes, meu projeto rebelde de adolescente era sair o quanto antes de casa. O encontro com o exótico Rio Apa, sua família e seu grupo de teatro, significou um inefável Shangrilá existencial — ali, com aquele pai e aquela família, eu seria feliz para sempre.

‘Muito da minha apreensão do mundo artístico e literário veio da experiência profunda desses anos de passagem’

Era o melhor de dois mundos: adolescente revolucionário, vivia como um transgressor radical do “sistema”, sob a égide da autêntica vida natural preconizada com valores mais ou menos poéticos de uma Idade Média pagã. Para dizer numa só expressão, o projeto de teatro rioapeano, acompanhando o espírito contracultural que começava a tomar conta do mundo dos anos 1960 em diante, preconizava uma fusão emocional completa entre a vida e a arte. Ser “autêntico” — uma gaiola perigosamente sem grades — era a chave. No caso dele, que formulou a ideia radical de um “teatro sem texto”, composto de sessões emocionais a partir de um roteiro vago, era uma espécie simplificada de Jerzy Grotowski — o defensor do “teatro pobre” — antes que se falasse de Grotowski no Brasil e menos ainda naquele isolamento comunitário.

Muito deste ideário estava no espírito do tempo em sua versão “apolítica” (a versão “política” daquela geração, com ramificações que passaram pela tragédia da luta armada, ganharia o poder trinta anos depois). Vivia-se o primeiro momento de uma onda místico-irracionalista que não pararia de crescer nas décadas seguintes. Há dois detalhes importantes aqui. O primeiro é que o guru, uma figura carismática e messiânica, era de fato um anti-intelectual, atavicamente desconfiado da razão livresca (o que também estava no espírito do tempo, um traço que avançaria exponencialmente no país); sua formação acadêmica era pobre, e seu repertório limitado a referências mais míticas que racionais. Ele nunca conseguiu formular uma teoria sólida de seu projeto de teatro, basicamente realizado em torno de sua presença física e sua retórica contagiante (e com frequência manipuladora), diante das rebeldias sem causa do lumpesinato cultural que ali desembarcava.

O segundo detalhe é que éramos a periferia da periferia: escondidos em Antonina, com presença eventual em festivais de teatro amador com repercussão apenas local, aquela família comunitária vivia numa aldeia imaginária à margem do tempo — que passava. A aldeia se encerrou na segunda metade da década de 70, quando o projeto teatral rioapeano se concentrou inteiro numa Paixão de Cristo anual, representada ao ar livre com dezenas de atores e aderentes, num caos criativo de improvisos e de falas não ortodoxas (houve até um Cristo ateu). A partir de 1979, a Paixão se transferiu (com a família do guru) para Florianópolis, e passou a ser representada nas dunas da Lagoa da Conceição, em happenings anuais, agora agregando dezenas de atores, curiosos e aprendizes de várias cidades que se reuniam ali em dois ou três ensaios de fins de semana antes da Semana Santa. Já eram mais encontros afetivos de velhos amigos que propriamente existenciais, artísticos ou intelectuais; restava muito pouco da “alma” radical comunitária original dos tempos de Antonina, o país já era outro e o discurso do guru, paralisado numa essência cada vez mais anacrônica, perdia seu carisma e seu poder de angariar novos discípulos. Durante alguns breves anos — suprema heresia burguesa — a Paixão chegou até a se incorporar ao calendário turístico da cidade durante a Semana Santa.

Sair daquele casulo familiar autoimune para o mundo urbano real não foi um processo emocionalmente simples para mim. “Ensaio da Paixão” (ainda com o título “Devassa da Paixão”), que comecei a trabalhar em 1979 inspirado pelas performances nas dunas da Lagoa da Conceição, foi um livro concebido já sob o espírito desta passagem. Sua escrita incorporou o ideário rioapeano de fusão entre vida e arte, que eu trazia comigo como um talismã de infância — os principais personagens são quase todos baseados diretamente em pessoas reais que participavam do grupo, incluindo amigos bastante próximos. Mais: lia os capítulos em rodas dos amigos-personagens, absorvendo suas reações. Depois de pronto o livro, no final de 1981, os originais circularam no grupo — o pintor Mano Alvim (que serviu de fonte para o personagem Miro) chegou a desenhar uma bela ilustração em crayon e nanquim na capa do surrado exemplar datilografado e encadernado.

Eu já havia escrito algo semelhante, uma década antes, nos tempos da velha comunidade, numa novelinha “em tempo real” inteira à clef, em capítulos semanais, lida apenas pelos personagens, chamada “Sopa de Legumes”. Era uma sátira às vezes cruel sobre as figuras da trupe e do nosso guru, frisando um ridículo em que eu mesmo me incluía conciliadora e estrategicamente — e que, aliás, o próprio Rio Apa achava ótima. Pura brincadeira; valor literário zero, mas divertido. Com o “Ensaio”, eu quis retomar esse projeto de origem, algo que representasse minha experiência comunitária, mas agora pensando em literatura; eu queria escrever um romance com vida autônoma, uma narrativa que transcendesse os limites autossuficientes da pequena tribo. Depois de um livro de contos e duas noveletas publicadas, comecei a me sentir um escritor. Enfim cursando a universidade, eu já me sentia intelectualmente do lado de fora; mas os vínculos emocionais funcionam com outra lógica, muito mais poderosa.

‘Sair daquele casulo familiar autoimune para o mundo urbano real não foi um processo emocionalmente simples para mim’

A linguagem não engana, e escritores são animais cruéis: o velho guru, de quem eu queria me livrar, está ausente da história que, afinal, só existe em função dele; no romance, ele se transforma numa efígie distante, um louco autoritário e messiânico, de fato sem nenhum diálogo ou interação com o grupo³. E morre ao final. A moldura da ditadura militar e de sua estupidez cria o elo da narrativa com o tempo brasileiro concreto, e de certa forma se mantém como o único ponto ideológico contestatório em comum, sem entrar em nenhuma minudência política realista. Já os personagens agem num enquadramento “teatral” dominado pelo diálogo, de presença permanente no livro. É exatamente o que eles dizem com tanta liberdade que, em vários momentos, fere o ouvido deste leitor mais velho que os escreveu quando jovem.

Volto à questão: como “revisá-los”? É a segunda vez que me faço essa pergunta. Terminado em 1981, o livro foi enfim publicado em 1986, numa co-edição caseira da Criar Edições com a Fundação Cultural Catarinense (por ter recebido uma menção honrosa no antigo Prêmio Cruz e Souza de literatura). Em 1999, fiz uma revisão para uma edição da editora Rocco. Relendo agora, percebo que naquela releitura não foi o “politicamente incorreto” que me incomodou (embora começasse a entrar em cena, ainda era um tópico sem poder de polícia); tratei apenas de questões de estilo, aqui e ali tentando sofisticar e psicologizar momentos que me pareciam demasiado brutos (como linguagem) — via-me um escritor maduro ornamentando rascunhos.

Agora, outros vinte anos depois, vejo que foi um erro, que eu estava destruindo justamente a limpidez direta que era o sentido da sua criação. De modo que, para esta edição, “restaurei” muitas cenas e formas da composição original. Mas, em alguns momentos, cedendo covarde ao espírito do tempo, suavizei a violência preconceituosa de algumas falas (violência que continua presente com outra forma), não para purificar o livro de seus crimes, mas para não ser injusto com os personagens, que seriam julgados, cancelados e trucidados pela letra de leis, normas, eufemismos e critérios então inexistentes.

Percebo que o fantasma do velho guru continua presente: Ensaio da Paixão mantém seu espírito original de uma performance em tempo real, sempre inacabada, nunca igual a ela mesma.

C. T.

¹ Na verdade, este “descolamento” do estatuto literário de uma voz social imperativa e obrigatória vem de muito longe, no compasso histórico; minha pequena ambição aqui, entretanto, é me limitar apenas à experiência pessoal.
² São puras impressões pessoais da minha memória dos anos 1970, que repercutem no livro. Não vai aqui nenhum levantamento histórico-linguístico de base científica.
³ O objeto da minha dissertação de mestrado, alguns anos depois, foi a narrativa Os vivos e os mortos, a principal obra de Rio Apa. O detalhe linguístico que me surpreendeu (repetindo: a linguagem não engana) é que, em 800 páginas, o narrador em nenhum momento usa uma conjunção adversativa.