Literatura, Rebentos,
Sem medo de sentir medo
Em sua estreia na literatura infantojuvenil, Martha Batalha trata de angústias que rondam os pequenos com leveza e criatividade
01out2024 • Atualizado em: 30set2024 | Edição #86 out“Isso […] faz muito tempo. Aconteceu quando eu era criança pequena. Agora eu sou criança grande”. Liz tem quase onze anos quando lembra de certa noite em que não conseguia dormir, assombrada pela escuridão do quarto — inofensiva à luz do dia, a cadeira com roupas penduradas a ameaçava com ares de monstro. Quis a mãe ao seu lado, e então descobriu que ela era uma especialista no assunto: conhecia muitos tipos terríveis, como o medo-lençol, que cobre a pessoa toda; o medo-freio, que a deixa paralisada; e o medo-montanha, gigantesco e tão alto que parece impossível de ser escalado. Naquela noite, com a ajuda da mãe, Liz encontrou um amigo imaginário chamado Igor e, com ele, a resposta para driblar o medo.
Mas tudo isso aconteceu há muito tempo, e agora ela está sozinha com seus monstros. O mundo virou de ponta-cabeça depois da morte da mãe, e ela só consegue se referir a essa ausência como Algo Gigantescamente Ruim Acontecido, fugindo das palavras que dariam forma à realidade. Com uma imaginação borbulhante, a menina inventa estratégias para dar conta de tudo o que acontece a partir de então: a mudança do apartamento, numa cidade cheia de prédios e movimento, para uma casa isolada, no meio do que, para ela, é uma floresta — onde o irmãozinho Tico, o pai e ela passam a viver com Raquel, a avó que, aos olhos de Liz, só pode ser de mentira, porque, além de loira, “tem uma verruga peluda no queixo e jeito de bruxa”.
A autora se vale do humor e da fantasia para falar sobre as relações familiares em meio ao luto
Em Liz sem medo, a autora de A vida invisível de Eurídice Gusmão — romance publicado em vários países e adaptado para o cinema pelo diretor Karim Aïnouz —, mostra que também sabe contar histórias para os pequenos, traduzindo ideias e emoções que uma criança nem sempre consegue nomear:
Eu não queria me mudar, mas não sabia que não queria. Isso eu entendi só depois e pensando muito — que às vezes a gente não quer uma coisa, mas não sabe dizer o motivo ou dizer que não quer. Tão mais fácil seria saber tudo de cara, como se fosse, deixa eu ver, uma opinião sobre bife de fígado. Mamãe tentou me dar uma vez. Eu não sabia direito o que era, mas olhei e cheirei e sabia que não gostava e soube dizer que não gostava, aliás, soube gritar que não gostava até ela sumir com aquilo. Mas com outras coisas, e coisas de sentir e não de comer ou cheirar, é muito difícil saber.
Liz quer sua vida de volta com tudo como era antes, o pai no computador, trabalhando sem prestar atenção na bagunça do Tico espalhando brinquedos pelo chão da sala, e a mãe chegando de mais uma das suas viagens pelo mundo com a mala lotada de presentes e histórias, trazendo as fotografias que ela fazia e eram publicadas nos jornais. A menina quer voltar aos dias naquele apartamento onde tudo era tão bom porque sua mãe existia. Inconformada com a ideia de continuar no sítio daquela avó estranha, e sem entender quanto tempo seria o “tempo indeterminado” que o pai diz que ficariam lá, Liz mergulha em seus pensamentos e chora, escondida dentro de um grande armário.
Ali, entre os casacos da “vó de mentira”, reconhece uma roupinha que o irmão usava quando era bebê ao lado de um casaco que tinha sido dela anos atrás; também é lá que ela reencontra Igor, a girafa-amigo-imaginário que a abraça enrolando seu longo pescoço no dela. A menina logo se lembra de como Igor entendia tudo sem que ela precisasse explicar, e isso basta para que, juntos, tracem um plano para construir uma máquina de dar marcha a ré: com ela, Liz poderia voltar ao passado onde sua mãe ainda vivia.
Dueto afinado
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Com uma linguagem inventiva, Batalha se vale do humor e da fantasia para falar sobre as relações familiares em meio ao luto e à dor causada por uma perda tão difícil. Temas complexos que são abordados com a mesma leveza nas ilustrações de Joana Penna, compondo um dueto afinado entre as palavras e as imagens que dão corpo à aventura de Liz, Tico e Igor. Uma jornada de amadurecimento e descobertas, ou talvez, redescobertas, como a da própria Liz, lembrando da mãe que a ensinou a procurar as respostas dentro dela mesma — é ali que a menina encontra força e coragem para encarar as mudanças enfrentando os medos.
Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024. Com o título “Sem medo de sentir medo”
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