Encontro de Leituras,

Pequenas misericórdias

Premiada escritora portuguesa, Lídia Jorge parte da experiência de sua mãe para construir um romance sobre o sentido da vida na velhice

28ago2024 | Edição #85
A escritora portuguesa Lídia Jorge (Frank Ferville/Divulgação)

A primeira página de Misericórdia esclarece que a senhora Maria Alberta Nunes Amado — ou dona Alberti, como é chamada no Hotel Paraíso — se valeu de um Olympus Note Corder DP-20 para gravar, ao longo do seu último ano de vida, um áudio de 38 horas que deu origem aos textos das mais de trezentas páginas seguintes. A transcrição assumidamente infiel dessa espécie de diário transporta o leitor às dependências do Hotel Paraíso, em Valmares — a mesma aldeia do universo ficcional de Lídia Jorge, onde se desenrolaram as narrativas de O vale da paixão, de 1998, e O vento assobiando nas gruas, de 2002.

Ainda que o texto inicial avise que foram retirados do relato os chavões que remetem à oralidade, é possível que alguns leitores brasileiros estranhem a narradora sendo conduzida numa “charrete” ao lado das “canadianas” do senhor Peralta, mas a cadeira de rodas da protagonista assim como as muletas do seu colega de residência se traduzem em cena, como tantas palavras e expressões que pontuam a prosa musical de dona Alberti.

Dedicado à sua mãe, Maria dos Remédios, que inspirou a personagem Maria Alberta, Misericórdia vem colecionando prêmios desde sua publicação, em 2022, pela editora portuguesa Dom Quixote. Entremeando o riquíssimo universo interior da narradora aos acontecimentos de um mundo pré-pandemia, Jorge retrata a velhice de forma surpreendente, com personagens complexas que convivem com os limites do corpo e a proximidade da morte sem ceder ao desencanto e à amargura; ao contrário, os residentes do Hotel Paraíso vivenciam as relações e os próprios sentimentos com intensidade.

Todos ali se agarram às possibilidades de prazer, incluindo as do desejo e do amor

Nessa miniatura do mundo, o dia a dia de idosas e idosos é retratado com múltiplas nuances, iluminando a condição humana com um elenco de personagens vibrantes, que põem em cena tudo o que não envelhece com o tempo — crenças, ideias e contradições, a intolerância e o preconceito, assim como o afeto, a solidariedade e a capacidade de se indignar diante das injustiças. Contra o apagamento melancólico que assombra essa fase da vida, todos ali se agarram às possibilidades de prazer, incluindo as do desejo e do amor:

— Será que abandona nossa mesa e passa a tomar as refeições com o sargento? Mas não, o senhor João Almeida, sargento, sentou-se numa mesa em frente. […] A proximidade da atenção que dona Joaninha dispensava ao sargento alvoroçou a nossa mesa.

Presente em muitos dos relatos da narradora, dona Joaninha incorpora com faceirice a força dos impulsos sexuais raramente atribuídos aos idosos, desmontando o estereótipo que despe a velhice de toda e qualquer sexualidade. Jorge nos faz sentir a pulsão do desejo que Joaninha experimenta nas noites enluaradas. E se as coisas mudam — porque tudo passa e muda, como lembra dona Alberti —, nada altera a vontade de viver de sua colega, que volta a se enamorar quando chega ao Hotel Paraíso o combativo senhor Tó.

Esse não é o único tabu que Misericórdia faz cair por terra: logo no início, dona Alberti deixa claro que foi dela a iniciativa de se instalar na residência, contrariando o clichê do idoso que já não tem vontade própria, como se fragilidade e dependência fossem estados intrínsecos a todos que envelhecem. Nem sempre é assim, e esse é o caso da narradora, que age e tantas vezes reage com vigor ao que lhe é imposto.

Ao se decidir pelo que ela mesma define como “exílio”, deixando para trás tudo o que já não cabe no lugar em que escolheu viver, a pragmática dona Alberti encara a nova etapa de sua vida com determinação, consciente de que já não há espaço para os objetos e os segredos de antes. Ali, nem mesmo seu corpo lhe pertence, mas os pensamentos seguem sendo só dela, e no que ninguém pode vigiar, a narradora experimenta a liberdade de ser e sentir a vida de acordo com suas crenças: “Eu penso que a esperança é simplesmente imortal”.

O corpo da noite

Com essa convicção, que sustenta a protagonista em tempos de incerteza quanto ao seu futuro (e ao do mundo), dona Alberti enfrenta sua pior inimiga, a noite — figura monstruosa com quem ela trava batalhas terríveis, recorrendo ora à memória, ora à perspicácia, para triunfar sobre a morte.

Durante o jogo tenso que se estabelece enquanto responde às perguntas dificílimas dessa esfinge — “qual é a capital da Islândia ou em que ponto da Terra se localiza a cidade de Carachi” —, ela rememora as páginas do Grande Atlas do Mundo, que a guiou por toda a vida pelos caminhos percorridos pelo pai de sua filha, que, depois de presenteá-la com o livro, some no mundo e deixa a marca de um amor irrecuperável como um dia será o próprio mapa, destruído durante uma tempestade que inunda a casa de dona Alberti. 

O Atlas conduz a cartografia emocional da narrativa, espelhando o destino da protagonista no de Lilimunde, a jovem cuidadora que tanto afeto inspira em dona Alberti. Com a intuição e o olfato aguçados pela privação de outros sentidos, a narradora pressente não apenas a primavera se insinuando, mas também a nova estação que chega ao corpo da garota e antecipa o sofrimento da adolescente que, como ela, foi seduzida pelas promessas de um homem que provavelmente a abandonará.

A partir do relacionamento da protagonista com os cuidadores e cuidadoras do Hotel, Jorge insere à trama um viés social, construindo um panorama da situação desses profissionais, quase sempre imigrantes, muitas vezes obrigados a encarar dupla jornada de trabalho em condições que se tornam ainda mais precárias com a pandemia do Covid-19. O que não impede que o melhor de cada um venha à tona quando só a vida importa: o carinho com que a porto–riquenha Nina Mercedes lava o rosto de dona Alberti com algodão embebido em água de rosas; a doçura do marroquino Ali Abdul, que se refere a ela com as palavras jolie e strong; a companhia de dona Joaninha, massageando os pulsos da amiga para curar suas dores com óleo de alecrim; a delicadeza com que os vultos que ela já não reconhece agasalham seu corpo enfermo — nesses pequenos gestos, a mais pura tradução da palavra misericórdia.

Quem escreveu esse texto

Silvana Tavano

Escritora e professora, é autora de Sonhozzz (Salamandra) e O último sábado de julho amanhece quieto (Autêntica).

Matéria publicada na edição impressa #85 em setembro de 2024.

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