Quadrinhos,
Oferenda à la Onã
Biografia de Carlos Zéfiro, autor de quadrinhos pornográficos no Brasil entre 1950 e 70, não esconde adoração pelo mestre
28fev2019 | Edição #20 Mar.2019Parece que todo homem que foi moleque e adolescente nos anos 1960 tem alguma história para contar na qual os catecismos de Carlos Zéfiro foram o epicentro de uma peripécia. E quem já parou para ler Carlos Zéfiro, com as duas mãos, prestando atenção nos diálogos, sabe que ali tem material para toda uma tese de sociologia — a maneira como mulheres e homens se relacionam, dialogam, a ordem pela qual são tomadas essa e aquela liberdade com as palavras e os corpos…
Foram anos de pesquisa, que nos põem a par dos mais exíguos detalhes, vez ou outra repetidos páginas adiante — podia ser mais enxuto
Mas presume-se que a grande maioria dos que tiveram seus catecismos entre as mãos fez a leitura com uma mão só. A pornografia era bem mais difícil de achar naquela época, mas parece que a curiosidade de ver gente pelada e em pleno ato era a mesma.
O deus da sacanagem, de Gonçalo Junior, conta a história desse mítico autor de quadrinhos pornográficos, cujo nome verdadeiro, Alcides Aguiar Caminha, e personalidade pacata de funcionário público foram escondidos por muito tempo por trás de um pseudônimo. E contextualiza as condições que fizeram dele mítico — foram anos de pesquisa, entrevistas com familiares e conhecidos. Ficamos a par dos mais exíguos detalhes, vez ou outra repetidos páginas adiante. São 384 páginas, mas podia ser mais enxuto.
Fica claro logo no título que o autor não esconde a adoração pelo seu objeto de estudo. Se Zéfiro é o deus do vento, Carlos Zéfiro é o deus da “sacanagem”, palavra já meio datada mas de deliciosa polissemia, que implica transgressão, sexo e troça, graça e perversão. A obra é um elogio ao mestre idolatrado. Sem distanciamento. Gonçalo é um colecionador de Zéfiro e tem muitos causos a contar. É uma pena que não os relate em primeira pessoa, o que daria mais sabor à obra, mas também exigiria aquela destreza textual para dosar o público e o privado, habilidade que Michel Leiris comparava a tourear. Nessas horas cruciais, quando parece que teremos um relato tirado do fundo da memória, o autor joga a bola para alguma citação pescada a esmo e sem contexto, ou, naqueles que são os trechos menos interessantes do livro, assume uma voz de analista de boteco.
Há quem goste
Mas não há dúvidas de que estamos lendo um especialista da área: os nomes de autores, editoras, personagens e referências pululam aos borbotões tanto quanto oferendas à la Onã (oferendas, estas, ilustradas por algumas manchinhas reluzentes na contracapa do livro — há quem goste). E muitas vezes no mesmo ritmo atabalhoado dos adolescentes que eram fãs do biografado, numa lógica nem sempre clara, com tantas idas e vindas entre as datas que nem um DeLorean daria conta, embora o autor tenha muitos livros no currículo. Há, de fato, questões que não se resolvem com a experiência, e sim com um bom editor. Mas a editora Noir, empreendimento do próprio Gonçalo, tem um quadro bastante exíguo e luta a batalha dos justos e apaixonados pelo que fazem. É, não está fácil pra ninguém. Incluindo o leitor, que se depara aqui e ali com erros de concordância e redundância, entre outras categorias.
As imagens ilustrativas também são organizadas de maneira toda peculiar. A revistinha citada como referência para o estilo de Zéfiro aparece dezenas de páginas à frente do texto que a cita, quando o leitor há muito já esqueceu dela. Após essa descoberta, resta vasculhar páginas à frente e procurar se, por acaso, o autor colocou alguma imagem que ilustre aquele estilo de capa com letreiro na diagonal, típico de Zéfiro, que ele acabou de mencionar.
O autor faz um esforço para se adequar aos atuais padrões mais feministas de visão de mundo, mas o conflito com as visões prévias está ali
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Mas se o leitor quiser uma pequena demonstração, um exemplo só, com início, meio e fim, de como Carlos Zéfiro conseguia enredar a atenção e o tesão ao longo de seus quadrinhos, vai ter que procurar nas estantes de sebos pelas compilações feitas nos anos 1980 por Joaquim Marinho e Otacílio d’Assunção, edições cada vez mais raras e caras. O livro de Gonçalo não traz nenhuma historinha completa.
E, por fim, cabe uma observação sobre feminismo e machismo. Nota-se que, principalmente durante os momentos de analista de costumes, o autor faz um tremendo esforço para se adequar aos atuais padrões mais feministas de visão de mundo, esforço que acredito ser bastante sincero. Mas o conflito entre essa versão atualmente mais adequada e as visões prévias está ali, para quem quiser ver, patente ou nas entrelinhas. Seja nos trocadilhos infames — “em uma época de tabus e preconceitos, povoada por moças que faziam questão fechada (sem trocadilho) de manter a virgindade, jogando duro com os namorados para levá-los ao altar” — ou nos adjetivos de relevância questionável — “os taludinhos rapazes da década de 1950 tiveram poucas opções de prazer sexual enquanto solteiros”, trecho de Gonçalo; ou na citação que ele traz do jornalista Roberto Porto, “as empregadinhas domésticas (algumas delas extremamente bem-fornidas)”, permanece um desconforto no ar. A questão não é fácil, mesmo. Mas o esforço é sempre válido.
Matéria publicada na edição impressa #20 Mar.2019 em fevereiro de 2019.