Alimentação,

O povo do livro de receitas

Livro reúne receitas das diversas tradições judaicas, apesar de edição pecar pela falta de organização

28nov2018 | Edição #18 nov.2018

A certa altura do Alcorão, Maomé se refere aos judeus como “o povo do livro”. O livro, no caso, é a Torá, a escritura sagrada, composta pelo pentateuco, os cinco primeiros livros da Bíblia. Além da lei escrita, outro livro central da cultural judaica é o Talmud, uma coleção de reflexões feitas por milhares de rabinos. Há também o Midrash, uma espécie de guia interpretativo oficial da Torá. Outro livro importante, hoje mais conhecido, é o Zohar, que reúne os fundamentos da cabala, o misticismo judaico. 

Alguns teóricos afirmam que a proeminência da escrita no judaísmo tem relação direta com a diáspora — afinal, com um longo histórico de expulsões e perseguições desde os primórdios de sua existência, o povo judeu viveu espalhado pelo mundo. Como quem faz muita mudança não pode se dar ao luxo de levar monumentos, templos e locais sagrados na carroça, fez-se necessária a criação de algo portátil, fácil de carregar. 

Sem pretensão de monumento, as 480 páginas de Cozinha judaica: 5.000 anos de histórias e gastronomia, de Marcia Algranti, impõem respeito à primeira vista. São poucas as obras sobre o assunto — as avós judias, detentoras de preciosos caderninhos de receitas, essas sim são monumentos. Mas elas estão envelhecendo e as mães, com suas jornadas duplas e triplas, não têm mais tempo para cozinhar. Uma referência organizada, portanto, é muito bem-vinda.

Apropriações

Espalhados pelo mundo, os judeus comiam a comida de qualquer local onde estivessem morando, mas com algumas restrições, detalhadas na Torá: não misturar carne e leite, não comer porco e derivados, não comer frutos do mar, não cozinhar entre o anoitecer de sexta-feira e o anoitecer de sábado etc. A comida que segue essas regras é chamada de kasher, ou kosher: “apropriada”, em hebraico. E restrições funcionam muito bem como estímulo para a criatividade. Foi a partir delas que começou a se formar a cozinha judaica. 

De modo muito geral, dois terços dos judeus do mundo são asquenaze (ashkenazi, em hebraico): originários da Europa Oriental, entre Alemanha e Rússia. Os principais ingredientes dali são batata, repolho, centeio e trigo-sarraceno. Não é de espantar a falta de popularidade dessa cozinha. 

Já o outro terço, os sefarditas, vagou pelas terras do mar Mediterâneo, entre o sul da Espanha e de Portugal, o norte da África (Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia, Egito), Turquia e Grécia. Não espanta também que a riqueza de sabores da cozinha sefardita seja igualmente proporcional à variedade de ingredientes e especiarias disponíveis por ali: das berinjelas e grãos-de-bico às águas de flores, massas folhadas, açafrão e azeites. 

Recentemente, quando a cozinha mediterrânea foi alçada ao topo das modas nutricionais, a culinária sefardita ganhou maior audiência. Um bom exemplo é o livro Jerusalém: sabores e receitas (Panelinha, 2014), de Yotam Ottolenghi e Sami Tamimi, cujas receitas são compartilhadas por comunidades de vários credos.

Restrições funcionam muito bem como estímulo para a criatividade. Foi a partir delas que começou a se formar a cozinha judaica

A comunidade judaica no Brasil é relativamente pequena: tem cerca de 150 mil pessoas, concentradas sobretudo em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre (nos Estados Unidos vivem 7 milhões de judeus; só em Nova York, passam de 1 milhão). No bairro do Bom Retiro, em São Paulo, primeiro endereço de grande parte da comunidade judaica paulistana, ainda se encontram alguns restaurantes tradicionais: Adi Shoshi Delishop, o Falafel Malka, a Casa da Bureka. Saudosos lembram do extinto Cecília. Em Higienópolis/Santa Cecília, temos a Casa Zilanna e a lanchonete Pinati. Em Pinheiros, Z Deli e a mais recente, Paca Polaca. A variedade de receitas é proporcional à de avós, mas são poucos aqueles de fora da comunidade judaica que já comeram um gefilte fish ou uma adafina. 

As primeiras 150 páginas do livro fazem um resumo da história judaica, tratando de alguns aspectos culturais e das principais festas do calendário. As outras são divididas em capítulos: pães, sopas, peixes, aves, carnes, “arroz, outros grãos, massas — acompanhamentos”, saladas e verduras, miscelânea, sobremesas e confeitaria, glossário e bibliografia. Há receitas da cozinha asquenaze, sefardita, iemenita e até da curiosa cozinha judaica indiana. 

Receita editorial

É uma pena que esse trabalho — que com certeza demandou muito tempo e esforço — não tenha recebido tratamento editorial à altura. Há erros de ortografia e repetição de palavras que poderiam ter sido evitados. As medidas não seguem um padrão: ora são xícaras, ora são gramas. Algumas trazem rendimento, outras não, e nem todas são bem explicadas — a receita de chalá (ou challah, na grafia escolhida), por exemplo, o pão do jantar de sexta-feira, não diz em que momento nem como devem ser acrescentadas as “9 1/2 xícaras de farinha de trigo”. A maioria das receitas tem um preâmbulo que explica o contexto em que a preparação ocorre ou de que região ela vem, mas não há isso em todas.

Para além dos problemas de revisão, um livro de quase quinhentas páginas mereceria capa dura. A relação entre as margens em branco e o espaço escrito na página é pouco arejada e dificulta a leitura, assim como o tipo de letra muito floreado escolhido para o texto das receitas. Os títulos são muitas vezes escritos em outra língua e, às vezes, seguidos do subtítulo em português todo em maiúsculas.  

E, por fim, abundam frases como “uma cozinha geralmente é definida como uma culinária que deriva de uma cultura particular”. Há ainda estruturas de sujeito e predicado mirabolantes e vírgulas (ou ausência de vírgulas) problemáticas: “Trata-se de banha de galinha ou de ganso preparada muito usada pelos judeus do Leste Europeu, que, além de não poderem fazer uso da banha de porco, preferida pelos gentios, mas proibida na alimentacão judaica kasher, era para aqueles que não queriam utilizar gordura suína na época o único óleo a que tinham acesso”. 

Ainda assim, é necessário reconhecer o valor da obra como pesquisa e também como porta de entrada em língua portuguesa para essa culinária pouco difundida no Brasil. Cozinha judaica é uma reedição — o livro foi lançado em 2001. Algranti, que é sobrinha da escritora Clarice Lispector, também é autora de Pequeno dicionário da gula, lançado em 2000.

Quem escreveu esse texto

Laura Valente

É jornalista, tradutora e intérprete de inglês e francês.

Matéria publicada na edição impressa #18 nov.2018 em novembro de 2018.