Literatura,
Superar traumas
Contos da escritora ruandesa Beata Umubyeyi Mairesse trazem histórias que aconteceram antes e depois do genocídio
17fev2022 | Edição #55Uma vez perguntaram a Beata Umubyeyi Mairesse se ela achava que os tútsis que sobreviveram ao genocídio, em 1994, em Ruanda tinham perdoado seus algozes. “Para mim, o grande perdão é a capacidade de exercer o vivre ensemble [viver junto].” Mesmo achando essa pergunta “indecente, porque não houve pedido de perdão”, é a convivência possível entre tútsis e hútus que a faz retornar com frequência ao país onde nasceu. Ejo e outros contos são, na verdade, três livros em um. Três coletâneas de contos que tratam do tema do genocídio sem nunca descrevê-lo. A primeira, que dá nome ao volume, foi lançada em 2015, na França, enquanto a obra como traduzida e publicada no Brasil pela editora Periferias saiu originalmente em 2020.
Aliás, um parêntese sobre a editora. A Periferias, fundada em 2019, é a editora do Instituto Maria e João Aleixo, que tem sede na Favela da Maré, no Rio de Janeiro. Além de publicar uma revista digital homônima, tem um catálogo que busca trazer para o centro as ideias e formulações do que considera esse território “periférico global”. Foi assim que descobriram a obra de Beata Umubyeyi Mairesse, a primeira autora internacional de sua lista. “Esse livro traz muito da cosmologia africana no processo de superação de traumas e da reinvenção do comum e da humanidade. Essa dimensão, da capacidade de reinvenção de mundo vinda das periferias, é central para nós”, diz Daniel Martins, editor executivo da Periferias.
Ontem e amanhã
Em Ejo — palavra que em quiniaruanda significa ao mesmo tempo “ontem” e “amanhã” —, Mairesse conta onze histórias que se passam antes ou depois de 1994. Sempre narradas por mulheres, são as sutilezas nem tão sutis do cotidiano que mostram como se pode chegar a uma situação-limite como essa e como se faz para viver depois da tragédia.
“No início, quando cheguei aqui, quando dizia de onde vinha, as senhoras me interrogavam, horrorizadas, sobre a minha história. Mas, assim que eu começava a contar, elas me cortavam para contar as histórias de guerra delas, a ocupação dos alemães, o exílio, os bombardeios, a fome. Eu me via tendo que me compadecer da miséria que tinham passado”, nos conta Agripine, a narradora de um dos contos da primeira parte.
Mairesse sobreviveu ao genocídio e refugiou-se na França com sua mãe, as únicas sobreviventes da família. Chegaram no início do verão de 1994, fugindo dos massacres. A autora foi acolhida por uma família francesa e voltou a Ruanda pela primeira vez em 2007, treze anos depois que tinha se instalado no exílio.
Em entrevista por telefone no final de janeiro à Quatro Cinco Um, Mairesse diz que a escolha do formato de contos para escrever a história dessa tragédia é muito consciente. “Os contos são um pedaço da história que é interrompido abruptamente — muito parecido com o que aconteceu com a vida de muitas pessoas no genocídio. Mas é também uma possibilidade de montar um mosaico de diferenças e complexidades, sem nunca correr o risco de reduzir a população ruandesa, a simplificar o que aconteceu.”
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“E escolhi a ficção para ter a possibilidade de ampliar essa visão. Ali tem muitos fatos reais de muitas pessoas que os contaram diretamente para mim ou para pessoas que conheci. Se eu tivesse escrito sobre a minha vida, poderia me sentir machucada se as pessoas não quisessem saber sobre ela. Assim estamos todos protegidos, os leitores e os escritores”, diz.
‘Os contos são um pedaço da história que é interrompido abruptamente, como aconteceu com a vida de muitas pessoas no genocídio’
Ejo ganhou vários prêmios literários. “Insisti muito em conseguir publicar contos, pois o mercado aqui não investe muito nesse formato. Eu acho que histórias assim precisavam desse respiro entre uma leitura e outra.” O segundo livro, Lézards, de 2017, também conta histórias que marcadas pelo massacre. Nele, a preocupação central dos contos ou mininovelas é a discussão da transmissão da memória do genocídio. Como as crianças e os jovens que sobreviveram ao extermínio carregarão as cicatrizes ao longo da vida? Como recontar a história sem passar o trauma para as gerações futuras?
“Mulheres e crianças primeiro”, diz Mairesse, quando perguntada sobre a escolha majoritária de seus narradores. “Com o anunciar-se da guerra, a criança precisa dar um jeito de assimilar ‘a verdade da vida’ a passos largos. Ninguém pede a sua opinião, e não importa que ela se engasgue e guarde desse período a lembrança persistente de uma bola presa na garganta. Vê o pai matar a mãe bem na sua frente, depois ir para a prisão ou fugir para outro país. E o avô, ah, também morreu com um tiro, aqui, bum, bem-vindo ao orfanato. Isso, se existir orfanato”, escreve em um dos contos.
“Outros contos”, a terceira parte do volume, traz quatro histórias que falam sobre o que aprender com o passado e o que não repetir no futuro, mas também sobre como os pontos de vista mudam a narrativa de um fato. Em “Desprezo”, uma correspondência entre prováveis dois amantes nos faz descobrir como a posição dominante de um dos participantes apresenta uma versão diferente da contada pela outra pessoa. A dominação, os impactos e as consequências da colonização europeia no continente africano, em Ruanda e na mente das pessoas é um tema transversal e que transparece em quase todas as histórias.
No último conto de Ejo, a personagem Blandine, que dá nome à história, diz: “Sabe, ela me disse que quando estudava na Suíça, ela tinha participado de uma oficina de conscientização, organizada por um brasileiro. Lá, ela tinha entendido a importância da linguagem; as classes dominantes conhecem o poder da linguagem, são modos de expressão delas que, colocados como modelo, viram instrumentos de dominação, ensinaram a ela. Ela entrou para a resistência, você imagina, com mais de cinquenta anos”.
Mairesse conta que nunca pensou que se tornaria uma escritora. Depois dos estudos, foi trabalhar em ongs internacionais e associações locais. Declara-se uma feminista militante, trabalhou até há pouco tempo com saúde mental comunitária em Bordeaux, onde mora atualmente, no sudoeste da França. Voltou-se para a literatura ao criar um clube de leitura. O primeiro livro brasileiro que leu foi Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado, depois se apaixonou por Conceição Evaristo. “E então uma frase de Toni Morrison me interpelou um dia: ‘Escreva o livro que você quer ler’. Foi assim que comecei a colocar as histórias no papel”, conta.
Matéria publicada na edição impressa #55 em outubro de 2021.
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