Ciências Sociais,
O controle sobre metade da população
Em análise transnacional, acadêmica francesa mostra como a violência contra as mulheres é central ao desenvolvimento da globalização neoliberal
01ago2022 | Edição #60O que liga violência doméstica aos mecanismos de tortura política? O que o serviço militar obrigatório e exclusivo dos homens implica na separação entre gêneros? Por que, onde o feminicídio permanece impune, as vítimas têm classe e raça predeterminadas? E como a violência extrema do aniquilamento perpetua o poder político nas poucas mãos de sempre? É a essas perguntas e à relação entre elas que a socióloga e feminista materialista francesa Jules Falquet procura responder na costura de quatro artigos — originalmente publicados em épocas e contextos distintos — em Pax neoliberalia: mulheres e reorganização global da violência, lançado em 2016 na França e agora no Brasil.
Professora e pesquisadora do Departamento de Filosofia da Universidade Vincennes-Saint-Denis (antiga Paris 8), Falquet trabalha há mais de trinta anos buscando construir pontes entre a França e a América Latina, regiões onde ela mora desde os anos 90. Por isso, não é surpresa que três das análises do livro estão centradas nos contextos de El Salvador, México e Guatemala (o quarto país é a Turquia). A originalidade do alinhavo é mostrar como a violência perpetrada contra as mulheres é fundamental e central ao “desenvolvimento” da globalização neoliberal, como a conhecemos hoje. O salto é sair de uma análise restrita às questões privadas ou de gênero para olhar essa violência sob a perspectiva da geopolítica e da economia mundial, onde essa metade da população, oprimida por todos os meios, serve à sua reprodução de forma “lucrativa” e, acima de tudo, comportada e silenciosa.
Como ela conta na introdução, as pesquisas permitiram maior liberdade de tom e de análise, produzindo textos dificilmente classificáveis. Por isso, “pareceu útil reunir esses fragmentos de análise, revisitando-os e dando-lhes forma, na esperança de produzir, enfim, um quadro geral desta violência complexa, multiforme e sufocante.”
Apesar do seu rigor científico inatacável — o livro conta com uma primorosa bibliografia de referências, que vale ser consultada, de quase dez páginas! —, Falquet tem uma escrita clara e objetiva, de quem está acostumado e quer falar com todos nós, “leigo-a-s”. O que importa é que as ideias sejam compartilhadas e debatidas.
Todas por umas
O primeiro capítulo é profundamente impactante em sua clareza. A partir de sua pesquisa em El Salvador, Falquet mostra como a violência doméstica não criminalizada e quase admitida pela sociedade é parecida, em método e em resultados sobre as vítimas, individualmente e de forma coletiva, com a tortura realizada contra opositores políticos de um governo. “Não é necessário violar ou espancar todas as mulheres todos os dias: alguns casos particularmente horríveis divulgados com estrondo pela mídia sensacionalista, ou relatados pelas vizinhas, são suficientes para que cada mulher se preocupe e tema infringir as normas que supostamente a protegem de tal sorte.” Controlar o coletivo pelo medo do que pode acontecer ao indivíduo: não é também assim que a perseguição e a tortura política calam um movimento de oposição?
Essa consequência silenciosa sobre a autoestima individual e coletiva que a violência “privada” (e geralmente impune) impõe às mulheres se manifesta de muitas formas. Quando faz o paralelo com a tortura do Estado, principalmente em guerras de baixa intensidade, Falquet afirma sem rodeios: “O objetivo é menos a conquista de um território ou a neutralização de um adversário do que o controle dos corpos e mentes”.
A violência doméstica não criminalizada é parecida, em métodos e resultados, com a tortura política
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No terceiro capítulo, ela vai a fundo nas origens do termo “feminicídio” e debruça-se sobre os assassinatos e desaparecimentos de Ciudad Juarez, no México, para apresentar uma reflexão sobre a reorganização neoliberal da violência e trazer novas perspectivas sobre o próprio neoliberalismo. Falquet, de novo, liga consequências individuais às coletivas ao propor que feminicídios são “uma estratégia que visa trazer para casa algumas das mulheres que se aventuraram no mercado de trabalho, ao mesmo tempo que torna outras, aquelas de que o mercado precisa, o mais ‘dóceis’ possível”.
O que se espera
Falquet tem uma atitude pragmática para lutar contra os silêncios e os a priori em seu cotidiano. Aos dezessete anos, escolheu seu novo prenome, Jules — na França, usado exclusivamente para meninos —, para romper esse monopólio entre “tantos outros ‘monopólios arbitrários’”, diz. A autora queria evitar que fosse lida, escutada e etiquetada a partir de um lugar. Como pesquisadora, queria ser avaliada com o mínimo de interferências “exógenas”, mas apenas por sua qualidade acadêmica. Jules Falquet, portanto, pode ser qualquer um ou uma de nós, sem gênero, escapando de qualquer avaliação que pudesse dizer “só podia ser uma mulher…”.
Ao refletir sobre o que a violência conquistadora e colonizadora de corpos e territórios tem a ver com os alvos de povos originários (e particularmente com as mulheres), no artigo final, Falquet nos entrega uma semente de esperança: o nascimento de uma corrente, no Sul Global, mais especificamente entre as mulheres da população Xinca da Guatemala, de um feminismo holístico o suficiente para se antever como opositor a um sistema. “A partir de 2005 elas participam da revitalização étnica da identidade de seu povo, dedicando-se à defesa do território ancestral contra os grandes proprietários de terra, as culturas ogm [organismos geneticamente modificados] e o extrativismo mineiro transnacional. Simultaneamente, combatem frontalmente os feminicídios e a violência sexual cometida contra meninas em suas comunidades indígenas nas montanhas.”
Jules Falquet vê com otimismo o nascimento dessa corrente do feminismo comunitário, porque coletivo e imbricado na oposição a um sistema econômico que faz das mulheres as vítimas ideais. Tão “duras quanto sejam as condições, a resistência é, novamente, a ordem do dia”. Em todos os lugares, para todas nós.
Matéria publicada na edição impressa #60 em julho de 2022.