Literatura,

O Mundo é a Casa

Lançado durante a pandemia, romance de fantasia de Susanna Clarke mostra como as casas se tornaram o centro do universo

01fev2022 | Edição #54

Na parte Leste da Casa, há um lugar onde o Oceano não alcança. Os andares superiores despencaram e bloquearam a passagem. A água salgada foi gradualmente substituída por água da chuva. Lagos escuros surgiram, onde ninfeias flutuam nos cantos rasos. As profundezas do centro são mais traiçoeiras. Nesses Salões Inundados, as Estátuas têm mais de quinze metros de altura. Retratam homens de cabelos cacheados e barba farta cujos troncos musculosos se erguem sobre as águas sombrias e parecem se espichar para alcançar os Salões acima. As costas largas são um ótimo ponto para pescar, sobretudo à noite, quando o luar ilumina os peixes lá embaixo. É o que nos ensina Piranesi, o habitante da Casa — um Mundo infinito “onde a arquitetura e os Oceanos se confundem”. Ele não lembra como era sua existência antes de se mudar para lá e tampouco “Piranesi” é seu nome.

A Casa não é mero cenário de Piranesi, o segundo romance da autora britânica Susanna Clarke, lançado no Brasil pela editora Morro Branco. É personagem tão central e intrigante quanto o narrador. Preenchida pelo vazio, tem sua própria natureza de ritmos implacáveis. Para perdurar na Casa, é preciso conhecê-la: saber como se locomover pelo labirinto de vestíbulos, ficar atento às chuvas e marés, apurar os melhores locais para obter alimento. Piranesi é, antes de tudo, um sobrevivente. E tem consciência de que seu destino, caso dê um passo em falso, será o mesmo dos catorze esqueletos de ex-moradores para quem leva oferendas.

Surpreendentemente, Piranesi não se sente prisioneiro, nem sob limite. Apaixonado pela Casa, diz ser seu Filho e é grato por tudo que ela lhe fornece. Essa relação de respeito e harmonia, marcada pelo pertencimento, chega a ser desconcertante. Nas primeiras páginas, é quase automático questionar se Piranesi não seria ingênuo demais. Seu deslumbramento ecoa uma curiosidade própria da infância, quando nos tornamos exploradores de nós mesmos, das pessoas, do mundo. Aos poucos, a conexão íntima e essencial entre Piranesi e a Casa desvela suas nuances, mas não perde o toque de magia — um desejo de descobrir para aprender, não para extrair recursos.

Labiríntico

Na década de 1740, o italiano Giovanni Battista Piranesi criou dezesseis gravuras de prisões imaginárias: salões imensos onde escadas conectam o nada a lugar algum; onde colunas e arcos emolduram perspectivas que vão até o infinito; onde a luz revela tão pouco quanto as sombras. Ao atravessar o umbral da série Le Carceri d’Invenzione (os cárceres das invenções), dá para sentir que tanto o ar desses espaços quanto o tempo estão parados. Para onde quer que se olhe, não há fim, e o terror nos toma de assalto. Nas prisões de Piranesi, nada existe além das ruínas e da imensidão. Qualquer chance de mudar o futuro desmorona sob a pressão do eterno.

A obra e o sobrenome do artista serpentearam pelos séculos e despontaram em Piranesi. Sua atmosfera transborda incógnitas e provoca o leitor a duvidar de quaisquer suposições feitas antes de se aventurar pelo labirinto da Casa, cujas características fazem referência não apenas a Giovanni Battista, mas a C. S. Lewis, Ursula K. Le Guin e Jorge Luis Borges.

Borges foi uma influência definitiva para Clarke. Ela devorou os contos do argentino. Um deles se destacou: “A Casa de Astérion”, releitura do mito do Labirinto de Creta pela perspectiva do Minotauro. Foi o gatilho para despertar sua imaginação. Logo veio a vontade de escrever sobre uma casa sem fim, ocupada por dois personagens e um oceano. Como tantas boas histórias, a de Clarke demorou para se concretizar. Nesse meio-tempo, ela se consagrou como escritora de fantasia com Jonathan Strange e Mr. Norrell, uma trama divertida e intensa sobre as rivalidades de dois magos que tentam ressuscitar a magia na Inglaterra no início do século 19.

Jorge Luis Borges Borges foi uma influência definitiva para Clarke, com o conto ‘A Casa de Astérion’

Piranesi é distinto em tom e propósito do livro de estreia de Clarke, e seu escopo expandiu por ter sido lançado durante a pandemia de Covid-19. Agora, compreendemos melhor o isolamento e identificamos ao menos um traço em comum com Piranesi: nossas casas se tornaram o centro do universo. A narrativa nos leva a cogitar se não poderíamos ativar a aura onírica criada por Clarke e aprender meios para combater a solidão desesperançada e o medo da repetição interminável do cotidiano pandêmico.

Seduzidos pela fantasmagoria de Piranesi, somos tentados a desvendar possíveis significados. Desenredar o segredo da Casa é uma viagem que nos empurra rumo a diferentes destinos. Ela poderia configurar uma exploração filosófica sobre a construção de conhecimento e o peso atribuído ao saber; ou costurar um apanhado de discursos acerca dos labirintos da razão, da linguagem e da arte. Percorrendo seus corredores ao lado de Piranesi, tocamos em temas tão caros como amizade, trauma e transformações no âmago de nossa identidade.

Mas conhecer a Casa, diria Piranesi, conta mais do que qualquer resposta tirada dela. Seu valor não é o de um significado a ser interpretado e usado para outros fins, e sim o de ser a Casa. Toda vez que Piranesi conversa com o Mundo, ele nos indica que considera primordial acalentar o relacionamento de troca entre homem e ambiente. Seu registro meticuloso das marés e enchentes demonstra um desejo maior do que acumular dados. Ele cria o hábito de se organizar para admirar os encontros das correntezas e acredita que toda manifestação da Casa é igualmente importante. O Mundo é a Casa, e a Casa é o Mundo. Não precisamos de nenhum malabarismo semântico para refletir sobre os elos que construímos com nossa casa-mundo.

Clarke sussurra, através das Passagens e dos Salões, que nem tudo precisa ter uma solução. O encanto da fantasia de Piranesi está na amplitude. Ela nos convida a conjecturar e comparar, sem o compromisso de uma resposta. Certos mistérios podem manter sua impenetrabilidade e um mesmo elemento é capaz de simbolizar incontáveis enigmas. Nossas tarefas são imaginar e nos dispor a conhecer, no sentido mais sincero do ato.

Matéria publicada na edição impressa #54 em outubro de 2021.