Literatura infantojuvenil, Rebentos,
E se eles entrarem na minha casa?
Cartas e desenhos de crianças moradoras de favelas da Maré retratam cotidiano de violação de direitos básicos
01maio2024 • Atualizado em: 13maio2024Medo, susto, tristeza. As três palavras aparecem reiteradamente na sobrecapa de Eu devia estar na escola, manuscritas em letra infantil. Na ilustração que acompanha o texto, vemos um helicóptero disparando balas e um tanque de guerra. Como escreve Eliana Sousa Silva, fundadora da ONG Redes da Maré (RJ), na contracapa, as crianças autoras deste livro “proclamam que as violências sofridas por elas não podem fazer parte de sua vida sem que a sociedade reconheça o absurdo que é isso”.
Genocídio
Notícias de crianças e adolescentes, na maioria negros, mortos “acidentalmente” em operações policiais são frequentes nos meios de comunicação de alcance nacional. Em alguns casos, o apelo nos chega pela voz das vítimas: “Por que o senhor atirou em mim?” (Douglas, 17 anos, 2013, SP); “Mãe, ele não viu que eu estava com roupa de escola?” (Marcos Vinicius, 14 anos, 2018, RJ). São casos extremos, em que a infância é literalmente violada pelo Estado, brutalmente armado, em guerra com os grupos sociais mais vulneráveis.
Escolher quem pode viver e quem deve morrer é o que o filósofo francês Michel Foucault chamou de “racismo de Estado”, ou “biopolítica”, o filósofo camaronês Achille Mbembe nomeou como “necropolítica” e Abdias Nascimento, intelectual brasileiro e ativista político negro indicado duas vezes ao prêmio Nobel da Paz, denunciou como “genocídio do povo negro”.
São conceitos que se traduzem objetivamente em números apresentados na carta assinada pelas organizadoras nas páginas finais do livro: em 2023, quando iniciaram o projeto da publicação, foram realizadas 27 operações policiais nas favelas da Maré, que resultaram em quinze dias com escolas fechadas e 39 pessoas mortas.
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Viver cotidianamente o funcionamento desses dispositivos de guerra é experiência violenta de usurpação de direitos básicos, como nos contam as crianças moradoras das dezesseis favelas da Maré, bairro onde vivem, aproximadamente, 130 mil pessoas:
Era para eu já estar na escola.
De tarde, eu teria capoeira.
Tinha combinado de ir com
minha vó ao mercado.
Eu tinha médico.
No entanto, aqui estou:
atrás da máquina de lavar.
Embaixo da cama. Embaixo da mesa.
Quando os tiroteios acontecem,
eu me escondo.
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Os textos e desenhos que compõem o livro foram extraídos de 1.512 cartas endereçadas às autoridades brasileiras, em 2019, contando como é viver em meio a essas violências. A ideia foi proposta pela Redes da Maré e retomada em oficinas realizadas em parceria com as organizadoras do livro, Ananda Luz e Isabel Malzoni, e a pesquisadora Adelaide Rezende: “E se a gente escrevesse cartas para o poder público para contar o que acontece aqui durante as operações policiais e exigíssemos nossos direitos?”.
Ouvir a voz dessas crianças, por meio de suas expressões tão genuínas, é uma experiência dura e ambígua
O conjunto de textos e imagens expressa o absurdo ao qual se refere Sousa Silva na contracapa: crianças impedidas de ir à escola, ou escondidas embaixo das carteiras para não ser atingidas pelo tiroteio; crianças assustadas e tristes, enquanto deveriam estar brincando em casa; crianças sem direito de se movimentar livremente, que deveriam poder ir ao médico, frequentar normalmente as atividades esportivas e culturais da comunidade em que vivem. Em vez disso, ocupam-se com estratégias de preservação da própria vida e a dos pais:
Eu fico preocupado com meu pai e com minha mãe, que saem para trabalhar.
E se eles entrarem na minha casa?
Fico com medo da mãe se assustar
e resolver me buscar.
E se pega um tiro nela?
Ouvir a voz dessas crianças, por meio de suas expressões tão genuínas, é uma experiência dura e ambígua que este livro proporciona, trazendo muito mais perguntas do que respostas. Ao desespero de se deparar cara a cara com uma realidade tão violenta e injusta, soma-se certa esperança infantil — no melhor sentido da expressão — que ainda acredita em vozes insurgentes, assombradas com o perigo de não poder sonhar e dispostas a exigir das autoridades o mínimo de responsabilidade: “Queria que eles explicassem como a gente vai fazer para realizar os sonhos se perdemos tanta aula. Na televisão, não vão contar como foi. Só vão dizer há tantos feridos, são tantos mortos”.
Peraí. Esquecemos de perguntar o seu nome.
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