Literatura Negra,

De dentro da pele

Em sua estreia literária, Quito Ribeiro aborda como poucos a essência multifacetada do que é ser negro

26out2022 | Edição #63

Corro riscos ao iniciar uma resenha com a tentativa de explicar o conceito do fio de Ariadne. Mas o faço inspirada pelo autor de No canto dos ladinos, Quito Ribeiro, que em seu livro de estreia faz tudo, menos tomar a via óbvia para escrever um romance sobre negritude. A lenda remete à figura mitológica da princesa que entrega a seu amado Teseu um novelo de linha que lhe permite rastrear o caminho de volta no labirinto do Minotauro após matá-lo. Em lógica, é um método de resolução de problemas que consiste em testar arbitrariamente qualquer possível solução para o enigma. Em caso de fracasso, volta-se ao início e aplica-se o mesmo método novamente, testando a próxima solução possível.

Em se tratando de um livro que pretende investigar o racismo, faria sentido utilizar esse método diante da evidência de que a origem germinal do problema está na escravização da população negra? Ribeiro mostra que sim. E, ao percorrer cada caminho possível desse emaranhado temático, ele consegue mapear a amplitude da condição subjetiva da negritude, essencialmente ligada aos marcadores fenotípicos do corpo.


Em No canto dos ladinos, Quito Ribeiro faz tudo, menos tomar a via óbvia para escrever um romance sobre negritude

No canto dos ladinos começa em um lugar não usual para romances sobre essa temática quase sempre tão impregnada de violência e dor: uma personagem voa de avião e sofre com o fuso horário. É alguém como nós, brancos, que ainda somos a maioria dos leitores no Brasil. Só que Cristiane é negra. Mais do que isso, ela integra um grupo ainda menor que o de leitores de sua cor: é uma escritora negra.

A revelação da cor da pele da personagem, contudo, emerge da sua observação do outro: é o seu interesse na diáspora negra que lhe permite reconhecer familiaridade nos traços de comportamento de negros de origem diversa da sua. Ou, na prosa poética de Ribeiro, ser negra lhe permite identificar essas “partituras gestuais”. Isso nos leva, de cara, a uma cena absolutamente não usual na literatura (brasileira ou mundial): uma sala de terapia em que paciente e psicanalista são negras. Este será o método de navegação de Ribeiro, adentrando por portas inusuais no “viver negro” até chegar ao lugar inevitável da violência que, não se enganem, permeia o livro todo.

A palavra açoite não demora a aparecer, mas ela não nos chega no presente dos personagens, e sim inserida no passado recente de um escravo alforriado. A história que parece interessar ao autor é aquela construída pelos negros com o fim da escravidão — falar em liberdade seria exagero, pois retirar as correntes sem dar nada em troca foi a semente germinal da limitação drástica de potencial de todo um grupo étnico.

Ribeiro adentra por portas inusuais no ‘viver negro’ até chegar ao lugar inevitável da violência

No canto dos ladinos integra o grupo de romances recentes como O avesso da pele, de Jeferson Tenório, e Marrom e amarelo, de Paulo Scott, que retratam personagens negros que quebraram a bolha e ingressaram em ambientes historicamente brancos, mas sem fazer turismo ou safári social. São livros irmãos no tema, porém parentes mais distantes na literatura. Isso porque Tenório e Scott caminham por molduras narrativas claras: arquitetam uma boa trama para contar histórias de luto que bebem na força da violência inevitável que cerca o tema. Não é o caso de Ribeiro. Se Scott aborda as cotas raciais ao inserir o protagonista numa comissão governamental em Brasília, Ribeiro o faz pela vivência de uma personagem nos corredores universitários. Se os antecessores tratam de protagonistas assombrados por episódios violentos, mas ainda inseridos na sociedade, Ribeiro é radical com seu Erico, que passa a ser chamado de Cineasta: a violência o mastiga e cospe de volta com outra forma. Daí a menção inicial ao fio de Ariadne, técnica que difere da do erro e acerto por assumir que pode haver múltiplas respostas corretas para um problema.

Jogo

Talvez o melhor resumo de No canto dos ladinos seja dizer que é um romance sobre negros que não estão sendo massacrados da forma tradicional pelo sistema: eles simplesmente entram em um jogo já em curso muito antes da entrada deles. É o caso de Elisa, primeira da família a ingressar na faculdade, mas que o faz por meio de cotas num contexto já totalmente diferente do da geração anterior. Esta era a exceção no ambiente universitário e, para essas presenças negras minoritárias, predominavam as máscaras, enquanto a nova geração tem um “sorriso perfeito” e a coragem para o olho no olho. Ou de Bujega, o negro que dirige um carro e é chamado de playboy pelo moleque com sua mesma cor de pele no semáforo. O mundo daquele homem sempre o leu como moreno, mas de repente um adjetivo o embranquece e o empurra em uma jornada de reavaliação de sua trajetória que é a própria gênese de uma classe média que não fez dele o “neguinho” que pede Coca-Cola no semáforo, mas sempre o único “neguinho” da escola.

A chegada de Mariana na metade do livro pode acalmar os mais ansiosos por uma trama clássica, pois introduz um drama narrativo mais palpável com sua vida cotidiana, o trânsito pela religião e o eventual desaparecimento do marido. As irmãs Cristiane e Mariana talvez sejam uma espécie de núcleo duro da narrativa. A primeira se imprime pela intelectualidade, a segunda faz um mergulho mais empírico que passa por uma profunda espiritualidade. É na fricção entre as duas que o livro consegue transitar pelas religiões católica, de matriz africana e a variante cristã em que Mariana finalmente se encontra como pastora.

É inegável que o romance avança com personagens ricos, mas introduzidos por transições que tiram o leitor de uma sensação mínima de familiaridade. O interesse de Ribeiro pelo próprio ato de narrar mergulha a obra em uma exploração de subjetividades que faz desta uma leitura mais demandante da confiança do leitor em seguir na viagem proposta pelo autor. Paradoxalmente, é exatamente o que torna o livro excepcional e necessário, que aborda como poucos a essência multifacetada do que é ser negro. Para além da trama e dos eventos traumáticos de violência e exclusão, há um portal de acesso à percepção íntima que ultrapassa os fatos vividos do lado de fora da pele.

No canto dos ladinos é um romance invertebrado, labiríntico. Quito Ribeiro, consagrado como compositor, músico e montador de cinema, talvez tenha podido ser mais radical que seus colegas escritores em um livro de estreia que aposta no desejo e na confiança do leitor em percorrer o labirinto que propõe. Tal qual Teseu, aquele que segurar o fio de Ariadne escapará do Minotauro e embarcará em uma viagem impressionante.

Quem escreveu esse texto

Helen Beltrame-Linné

Graduada em direito pela USP e em cinema pela Sorbonne-Nouvelle, foi diretora da Fundação Bergmancenter. 

Matéria publicada na edição impressa #63 em outubro de 2022.