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Viagem ao centro de si

Em ‘A dissociação’, Nadia Yala Kisukidi narra a jornada imaginativa de uma menina negra entrelaçando a fantasia à busca por direitos e pertencimento; leia trecho

11nov2024
Nadia Yala Kisukidi (Bénédicte Roscot/Divulgação)

O romance A dissociação, da filósofa e escritora francesa Nadia Yala Kisukidi, mistura realismo fantástico, filosofia, fábula social e poesia para narrar uma viagem mágica e imaginativa pela França periférica que nasceu da diáspora africana. Publicado no Brasil pela Bazar do Tempo, o título chega às livrarias nesta semana com tradução de Mirella Botaro e Raquel Camargo.

Na história, repleta de acontecimentos que fogem da compreensão racional, uma menina acolhida pela avó depois da morte de seus pais inesperadamente para de crescer e se torna capaz de dissociar sua mente da dura realidade de uma pequena cidade, Villeneuve d’Ascq, no norte do país. 

Nas 288 páginas, Kidukidi conduz a protagonista por diversas localidades francesas e promove encontros com figuras que a ensinam sobre seus ancestrais africanos, discutindo o conceito de dissociação e o sentimento de pertencer simultaneamente a duas culturas diferentes, ao mesmo tempo que não se é parte de nenhuma delas. 

Filha de pai congolês e mãe franco-italiana, a escritora publicou em 2021, em parceria com a brasileira Djamila Ribeiro, o ensaio Dialogue transatlantique (“Diálogo transatlântico”, sem tradução para o português), pela Anacaona Éditions — no livro, as duas filósofas discutem o feminismo negro a partir de visões sobre a diáspora nos dois lados do Atlântico. A dissociação é o primeiro romance de Kidukidi. Leia a seguir um trecho.

Trecho de ‘A dissociação’

Fui recolhida por minha avó. Quando tinha dois anos. Numa casa de tijolos de um bairro operário. Céus baixos e brancos. Uma névoa contínua durante todo o mês de novembro. Ainda me lembro dos silêncios. O luto que desaba. Minha avó era assombrada pela lembrança de sua única filha. As datas de aniversários floriam como túmulos.

A Segunda Guerra Mundial havia despedaçado aquela mulher. O desaparecimento de sua filha, anos mais tarde, a destruíra por completo. Nos primeiros meses do conflito mundial, um tiro de canhão ceifou seu marido. Pouco antes do armistício — um belo azar. Quando a paz dos covardes foi proclamada, começaram a gritar por toda parte que era preciso renovar o país.

A alma da nação fora estragada pelo socialismo e pelo judaísmo. Era preciso encontrar valores essenciais. Capitular, um mal necessário. A avó levava no pescoço um medalhão de Santa Rita — santa do Impossível. Ela nunca parou de rezar. Apesar da desolação, a vida se desenvolvia em seu ventre. Uma vida que batia com o pé e desafiava o barulho das bombas e dos canhões. Minha mãe nasceu no meio da guerra. Sem pai. Em um mundo que só sonhava com ruínas. Ela se tornou o objeto de todas as dedicações, de todas as atenções. Um nascimento é uma bênção.

A guerra acabou. Enfim, veio a primavera. Um homem se apresentou à sua porta. Um vizinho. Ele se ajoelhou e pediu minha avó em casamento. As árvores estavam floridas. Um vento novo soprava, anunciando dias felizes, abundância. Que seria bom continuar como se tudo fosse possível. Como se pudéssemos recomeçar projetos de família, de lar. Mas retomar o fio era apagar a memória dos sacrificados, que não mereciam o esquecimento. Naquele dia, minha avó recuou um pouco e fechou cuidadosamente a porta. Ela decidiu que sua existência seria consagrada à lembrança e ao futuro nascente — sua filha.

Sua primeira e única filha. Ela não conheceu outros homens, suas bobagens, seus beijos. Nem seus discursos, nem suas mentiras. Acabou o amor, a vida frívola. Ela esqueceu o que era ter um corpo que se toca, se acaricia, se beija. Ela esqueceu os nervos, o cansaço e a febre. Pensando nisso, eu mesma, durante toda a minha existência, não prestei muita atenção. Fui sopro, fui espírito. Engolindo o hálito dos sonhos e do mundo — sem nunca sentir nem as texturas, nem os rostos, nem as peles.

Minha avó conhecia todos os gestos da maternidade. Quando me recebeu em sua casa, soube como me ninar. Como acalmar meus choros. Há mil maneiras de ser mãe. Para ela, ter filhos era apenas se sacrificar. Porque ela sabia: sua progenitura a vida tira de você. Era preciso aceitar isso como uma sabedoria e se dedicar ao seu papel, sem pensar nas despedidas. Ser mãe. Ter um coração em um mundo sem coração. Onde até o fruto de suas entranhas podia ir embora e esquecer o seio que o alimentara.

As mãos da minha avó em volta de minha cintura, apertando o laço do meu vestido. A toalha de água fria que ela passa cada manhã em meu rosto para me lavar. O leite quente com mel durante a semana e o achocolatado no domingo. As meias mil vezes remendadas. Mil vezes. Mil atenções, mil dedicações.

Mas as histórias têm um fim. Nem sempre, eu sei. No meu caso, era preciso, no entanto, reconhecer, existia uma espécie de lei natural, imutável — que nunca foi desmentida. As grandes alegrias são anedóticas. Quando eu tinha dez anos, minha avó teve que admitir. Eu não cresceria mais. Meu corpo havia parado, voluntariamente, seu crescimento. Eu era pequena, e estava condenada a continuar assim. Eu veria o mundo de baixo, teria por único horizonte as pernas dos transeuntes. Seus tornozelos e seus sapatos de má qualidade.

Essa parada súbita suscitou todas as preocupações. E até uma certa tristeza. Houve, primeiro, a valsa dos médicos e especialistas. As palavras complicadas da enciclopédia para determinar os fracassos da genética. Mas não tinha jeito. Não encontraram nada. Nenhuma mutação podia explicar o fim do meu crescimento. Acondroplasia. Hidrocefalia. Nenhuma conquista rizomática. 

As proporções dos meus membros e do meu rosto eram normais. Não havia falha cognitiva. Eu era um enigma. Me mediram, mediram o tamanho do meu corpo, do meu crânio. Eu abri a mandíbula mil vezes. Olhavam, no fundo das minhas entranhas, se um tumor maligno não havia se instalado. As auscultações, múltiplas, não trouxeram nenhuma solução. Quando o corpo foi esgotado pelas questões que recusava obstinadamente a responder, atacaram minha mente. Último recurso. Se a anomalia que afeta o corpo não pode ser vista, é porque ela é moral.

Então foi a vez dos pediatras, dos psicólogos. Voltaram à morte dos meus pais. À falta, à ausência. Um traumatismo que não se exprimia, que tinha certamente maltratado meu corpo. Mas eu não sofria. Não que eu saiba. E meus sorrisos, meus desenhos desampararam uma boa quantidade de especialistas, que não acharam nada além de divertimentos da infância. 

Procuraram durante um ano. E, precisaram admitir, não descobriram nada. Talvez as lacunas do saber médico, suas impotências, expliquem as primeiras confusões. Minha avó se tornou sombria. Primeiro ela acreditou que era tudo culpa sua. Prova de maus gestos de uma mãe ruim. 

Ela retomou uma a uma as diferentes etapas de minha educação. Teria me abraçado muito forte? Minha cama fora muito pequena? Minha comida? A poluição da usina onde ela trabalhava seria a causa?