Literatura, Literatura Negra,
Romancista da ambiguidade
Em entrevista, a escritora francesa Marie NDiaye fala sobre identidade e como sua escrita amadureceu com o passar da vida
01nov2024 • Atualizado em: 11nov2024 | Edição #87 novPor volta dos dez anos, Marie NDiaye foi presenteada por sua mãe, professora de ciências, com a Petite International, uma pequenina máquina de escrever de plástico, concebida especialmente para crianças. Nessa época, descobriu o livro Them, da escritora americana Joyce Carol Oates, obra que a mãe, leitora voraz, havia tomado emprestada na biblioteca.
“Foi um tipo de epifania. Saí transformada dessa leitura. Compreendi o que era possível criar com as palavras, e queria fazer igual. Esse livro mudou minha vida”, conta NDiaye, hoje aos 57 anos, sentada no sofá de seu apartamento em Paris, próximo à Place de la Nation. Tornar-se escritora não emergiu como uma interrogação, mas uma evidência, diz ela.
Mais tarde, adolescente, ganhou de sua tia uma enorme e pesada máquina de escrever profissional. “Minha tia trabalhava em um banco, que modernizou a agência e descartou vários equipamentos. Foi uma grande felicidade ter essa bela máquina. Era como um grande e velho carro que funcionava bem. E fazia muito ruído”, relembra. Entre os doze e quinze anos, se aventurou nas literaturas americana, russa e sul-americana, e tentava, à sua maneira, copiá-las. Ao ler Gabriel García Márquez, escreveu uma breve ficção que se passava na Colômbia. “Gostei imensamente de García Márquez, dessa erupção do fantástico na vida mais ordinária de pessoas comuns. Sempre fui muito atraída por essa mistura entre o fantástico e o real”, admite.
Em 1984, aos dezesseis anos, criou coragem e entregou seu manuscrito Quant au riche avenir (Quanto ao rico futuro, inédito no Brasil) — uma trama de escrita original e bem-humorada sobre a crise adolescente de um jovem órfão adotado por sua tia — na recepção de três conhecidas editoras francesas: Gallimard, Seuil e Minuit. Impressionado, Jérôme Lindon, célebre editor da última, ligou de imediato e foi encontrá-la à saída do colégio, com um contrato na mão. O livro foi publicado no ano seguinte, com elogios da crítica. Aos dezessete anos, Marie NDiaye iniciava uma trajetória que a consagraria como um dos principais nomes da cena literária contemporânea francesa.
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Em 2001, recebeu o prêmio Femina com seu sétimo romance, Rosie Carpe, uma história de negligência e traição familiar. Em 2003, tornou-se a primeira mulher depois de Marguerite Duras a entrar em vida no prestigioso repertório da Comédie-Française, com o texto Papa doit manger (Papai deve comer, em tradução livre), uma peça intimista e humanista em torno do racismo. Em 2009, ingressou no cobiçado clube de laureados do Goncourt, o mais importante prêmio da francofonia, com o romance Três mulheres fortes (Cosac Naify). A obra narra a história de três mulheres, Norah, Fanta e Khady Demba, em suas descobertas, tragédias e resiliências em um mundo caótico e traiçoeiro.
Nascida em 1967 em Pithiviers, no Vale do Loire, filha de mãe francesa e pai senegalês, NDiaye cresceu em subúrbios no sul de Paris. Quando tinha pouco mais de dez meses e seu irmão três anos, o pai viajou para o Senegal e nunca mais deu notícias à família. Ela só foi revê-lo — ou seja, conhecê-lo — aos vinte anos, quando fez uma viagem a Dakar. Sem jamais ter vivido na África — onde esteve apenas mais uma vez —, ela se reivindica de cultura “exclusivamente” francesa, herdeira de “Molière, Proust e Rousseau”. Aos que procuram lhe imputar a condição de escritora mulher, negra ou africana, ela refuta, e replica com, simplesmente, “escritora”.
Sua literatura é constantemente adjetivada de misteriosa, estranha, entre o realismo e o fantástico, impregnada de tramas envolvendo as relações familiares e a exclusão social, em uma escrita única considerada por críticos como inclassificável, por vezes autodefinida como “romancista da ambiguidade”. Sua preferência indiscutível é o romance, mas quando solicitada se arrisca na dramaturgia, na literatura infantil ou em roteiros para o cinema. Em 2009, escreveu o argumento de White Material (Minha terra, África), junto com a cineasta Claire Denis. Em 2022, repetiu a dose com a diretora Alice Diop em Saint Omer, filme baseado na história real de Fabienne Kabou, mãe condenada à prisão pelo infanticídio de sua filha de quinze meses. A experiência motivou a escrita de A vingança é minha, livro sobre o mesmo tema lançado em fevereiro pela Todavia, com tradução de Marília Scalzo. Outra obra de NDiaye já circulara pelo Brasil. Em 2010, a Cosac Naify havia publicado Coração apertado em tradução de Paulo Neves. Fora de catálogo, o romance ganhou uma edição em audiolivro lançada em julho pela Supersônica, na voz de Alice Carvalho.
Marie NDiaye é convidada da Flup 2024, Festa Literária das Periferias que acontece entre 11 e 17 de novembro no Rio de Janeiro, e estava ansiosa por conhecer o Brasil. Será a madrinha da cerimônia de premiação do Goncourt brasileiro, criado em 2019 para incentivar traduções para o português. “Quero trazer para casa muitos temperos do Brasil”, diz a entusiasta da boa cozinha, acrescentando pouco conhecer de nossa literatura, exceto por Clarice Lispector. Ao receber a Quatro Cinco Um em sua casa, revelou que estava próxima do ponto final de uma nova obra: “Devo terminá-la em uma semana.
Gosto muito de sentir esse final da escrita de um livro”, disse, sem esconder o sorriso de satisfação.
Você assume um gosto pela ambiguidade na escrita, diz que uma forma de desconforto lhe convém…
Nem poderia dizer que amo a ambiguidade, porque tenho a impressão de que não poderia escrever de outra forma. A ambivalência de uma situação me interessa tanto na vida como na literatura. A multiplicidade de razões, de motivos. A imprecisão de sentimentos em relação a pessoas de quem se gosta ou não. Isso leva você a ficar atento ao que sentem os outros, compreendê-los, e compreender a si mesmo em relação à reação das pessoas a você. Isso é o que chamamos simplesmente de matéria humana.
Não somos apenas várias pessoas em um mesmo cérebro, mas pessoas diferentes ao longo da nossa vida. Não sou a mesma hoje que era há algumas décadas ou quando meus filhos eram bebês, e hoje têm trinta anos, felizmente. Há esse conhecido provérbio que diz que só os imbecis nunca mudam.
Em seus livros, você aprecia finais abertos e ambíguos.
Eu termino meus romances de forma arbitrária, porque é preciso ter um fim. Mas no limbo que se segue, imagino outras coisas. Quando se morre, no limbo há tudo o que poderia seguir à morte, e a morte nos trava de forma arbitrária, como encerramos um romance.
Como escritora, você diz nunca assumir um ponto de vista moral ou ético. É o que você mais aprecia na literatura, poder se colocar acima de qualquer julgamento?
Talvez mais fora do que acima de qualquer julgamento. Quando escrevemos romances, temos personagens antipáticos, que fazem coisas impróprias, trata-se de tentar compreender isso, nunca de julgá-los. Não é o papel do escritor julgar. Penso que quando se julga, não se compreende tão bem. E o julgamento vai no sentido contrário dessa ambivalência da qual falamos.
Você já disse que, há um tempo, percebeu que seus personagens eram geralmente fracos ou fortes, em um sentido monstruoso e destrutivo. E que quis passar a retratar personagens cuja força não fosse baseada em cinismo, abuso de autoridade ou loucura, mas que tivessem uma “força sã”. O que seria isso?
Nesse caso, penso que também seja um caso de maturidade, como escritora e como pessoa. Quando se começa, é mais simples ter personagens menos complexos, porque conhecemos menos a vida. Com a idade, compreendi que podia escrever também sobre a bondade, com personagens generosos, bons, que encontrei tanto na realidade como nos livros. Tudo existe. Era um compartimento da vida que eu não havia explorado e que me interessa hoje, tanto quanto todo o resto. E à medida que amadureci, tentei usar o mínimo do fantástico possível, só o utilizo quando acho que é realmente necessário.
Eu me distanciei um pouco da magia. De qualquer forma, não me veria exatamente a mesma escritora aos dezessete e 57 anos. Felizmente. E penso que isso é devido a um tipo de maturidade no trabalho. Com a idade, adquiri uma maior possessão de meus meios técnicos, e isso me tornou mais livre.
Além de Joyce Carol Oates, você costuma citar outras influências: Claude Simon, Marina Tsvetaeva, Emily Dickinson, Sylvia Plath e Javier Marías. Mas Faulkner ocupa um lugar especial na sua estante. Por quê?
Descobri Faulkner por O som e a fúria. Há essa longa parte em que o personagem Benjy, que tem distúrbio mental, se expressa como ele pensa, em seu cérebro de adulto que permaneceu um pouco criança. Foi a primeira vez que li algo assim. Hoje, isso ocorre mais frequentemente. Mas ele escreveu isso no final dos anos 1920, foi uma coisa extremamente inovadora e audaciosa. E descobri todo esse mundo do sul dos Estados Unidos, era um exotismo para mim.
A categorização escritora mulher, negra ou africana, ela refuta, e replica com, simplesmente, ‘escritora’
Antes de Bourg-la-Reine (subúrbio rico de Paris), eu vivia em Fresnes, um subúrbio um pouco mais difícil. Mas foi sobretudo por sua técnica de escrita que fui atraída. Compreendi ali que se podia fazer tudo o que se queria com a escrita.
Você trata em suas histórias das relações humanas, da família, das origens, de personagens estranhos ao mundo e de si mesmos, há temas recorrentes, mas que surgem naturalmente, sem que você saiba por quê.
Eu não teorizo nada disso. Nem possuo os meios intelectuais e conhecimento de teoria literária para isso. Não fiz estudos superiores. Tudo o que conheço da literatura é como autodidata. Não escrevi teses nem ensaios sobre a literatura. Isso não me convinha. É apenas um fato objetivo: não sou uma intelectual. Acredito que para escrever, basta ler.
Ainda assim, acho magnífico que se possa fazer estudos de letras, se tornar professor, escrever teses de literatura. No fim, a literatura não serve ao mundo capitalista; desse ponto de vista específico, ela não serve a nada. As oficinas literárias chegaram na França há alguns anos, existem há mais tempo nos Estados Unidos e acho que podem ser uma coisa boa. Pode ser necessário ter uma avaliação crítica de alguém que não um amigo, o marido ou a mulher. Isso pode ser bom.
Em Três mulheres poderosas, pela primeira vez você ancorou seu trabalho na atualidade, abordando o tema dos migrantes, entre outros.
Comecei a escrever esse livro em 2007, e na época não se falava muito desses trajetos terríveis da migração, dos barcos no Mediterrâneo. Havia algumas linhas nos jornais, que eu lia atentamente. Numa noite, bem tarde, ouvi no rádio uma breve reportagem sobre uma travessia que terminou em tragédia. E pensei: essas pessoas são heróis. Heróis infelizes, trágicos. Suas histórias, coragem e bravura incríveis deveriam ser mais do que um relato às três da manhã ou três linhas nos jornais.
Senti necessidade de escrever sobre isso. Não sou jornalista, minha ferramenta é a literatura, então pensei numa maneira de transformar uma história real em literatura. Me preocupei com a realidade e que tudo que dizia respeito a coisas práticas, como a embarcação ou a chegada num lugar determinado, fosse preciso. Mas hoje não escreveria mais essa história, porque é algo bastante documentado.
Desde criança, você se diz fascinada pelas mulheres, como se você mesma não fosse uma, mas um homem intrigado e subjugado. Como é isso?
Penso que não é preciso ser do sexo oposto para ser fascinado pelo outro. Quando escrevo, não sei mais que sou uma mulher. Sou tudo. Talvez pelo fato de que na história o mundo feminino tenha sido menos representado na literatura. Hoje eu não diria mais isso, porque há muito mais mulheres que escrevem, muito mais representatividade de figuras femininas nos filmes, livros. Mas é verdade que há poucas décadas era menos o caso, e o que é menos visto me fascina mais do que o que é mais mostrado. Mas não é pelo fato de que seja uma mulher. Porque quando escrevo não sou mestiça, não sou mulher, tampouco um homem. Sou tudo e nada.
Você se considera feminista?
Sou uma cidadã feminista. Não sou uma escritora feminista. Na França, penso que se avança bem nessa questão. Mas seria bom que se perguntasse a mesma coisa a escritores homens. Feminista não é uma profissão, mas uma maneira de ser na vida. Todo mundo deveria sê-lo. E se todo mundo o fosse, essa palavra não existiria mais. Não é o trabalho das mulheres defender os direitos das mulheres.
‘Quando escrevemos, temos personagens que fazem coisas impróprias. Não é papel do escritor julgar’
Quando há manifestações pelo direito ao aborto, há uma enorme maioria de mulheres. Acho uma pena, pois isso diz respeito também aos homens. Nos debates sobre direito ao aborto, contracepção ou estupro, chamam só mulheres para falar. Mas não é só um problema das mulheres, mas da sociedade. Acho que não se deve nem mesmo dizer que os “homens devem nos apoiar”, pois não é uma ajuda, eles devem simplesmente estar presentes, com as mesmas reivindicações.
Você não quer que seus livros sejam descritos com palavras terminadas em “ista”: feminista, humanista, socialista. Enquanto cidadã, você pode ser tudo isso, mas não como artista.
Eu não posso definir minha literatura dessa forma. Mas deixo toda a liberdade ao leitor de defini-la como deseja. O leitor pensa e diz o que quer. Eu não o faço, mas cada leitor é rei da sua leitura.
Você começou a escrever aos onze anos, para “tornar aceitáveis os problemas de inadaptação à vida normal”. Que problemas eram esses?
Nessa idade eu já era uma grande leitora. No meu entorno, as crianças não liam muito. Eu me sentia um pouco diferente desse ponto de vista, não tinha interlocutores para falar das minhas leituras. Não era desagradável, mas me sentia um pouco distinta das pessoas da minha idade. Diferente para o bem, de uma certa maneira.
Na escola em Bourg-la-Reine, você e seu irmão eram as únicas crianças não brancas. Na infância e adolescência, nunca se sentiu uma pessoa negra. Como era isso?
Nasci em 1967, fui criança nos anos 70-80, e nesse tipo de bairro isso era raro. Não me sentia negra. Não tinha modelos. Não conheci a família do meu pai, convivia com minha mãe e os parentes dela, e não tinha razão de me sentir diferente deles. E é também o fato da mestiçagem, que, tenho a impressão, faz você socialmente ir de um lado a outro. Eu mesma nunca sofri racismo.
E hoje como se sente?
Não sinto nada. Não posso dizer que me sinto negra, não faz sentido na minha vida. As pessoas me veem assim, mas não tenho nada a ver com isso. Não tenho essa cultura que quiseram me impor. Certamente que minha vida e minha cultura seriam bem diferentes se, com a minha mãe, tivéssemos ido viver no país do meu pai na África. Mas não foi o caso.
Você diz que a dupla cultura, francesa e africana, não lhe foi oferecida: um francês que cresceu na África seria mais africano do que você.
Ser africano não é uma coisa genética, mas estar em um lugar onde se vive, cresce. Como ser francês, também não é genético, mas ser de cultura e língua francesa.
Faz sentido para você falar de literatura africana, sul-americana, francesa, francófona, negra ou feminina?
Não faz, porque não é minha história. Mas penso que para outros escritores com uma trajetória completamente diferente, pode ter um sentido. Falo unicamente em relação ao meu caso, não é um julgamento sobre a maneira como os outros se definem. Jamais faria isso.
‘Quando escrevo não sou mestiça, não sou mulher, tampouco homem. Sou tudo e nada’
Sei que na França, quando se é um escritor que vem do subúrbio norte e leste, é uma história completamente diferente. Quando se é filho de pais operários de origem magrebina, a história é ainda mais diversa. Cada um com sua trajetória, e são esses percursos que te tornam sensível a uma questão particular ou a uma causa precisa.
Essas experiências que viveu, você afirma, são propícias à escrita, criando uma sensação de “deslocamento” ou “leve defasagem”.
Tudo o que vivi, vejo, ouço, me alimenta na escrita. Quando se é mestiço, quer dizer metade-metade. Vivia com a minha mãe na França, e as pessoas me descreviam como negra. Nesse caso, elas poderiam também ter dito que sou branca. Mas quando somos metade, somos sempre levados a um determinado lado, curioso isso. Lembro que, quando era criança, em um momento pensei que isso não era justo. E ainda é assim hoje. Sei bem que ser negro fisicamente e historicamente não é bem a mesma coisa. Ser negro historicamente nos Estados Unidos tem um sentido profundo. Nesse ponto de vista, é curioso que digam que Kamala Harris, por exemplo, seja negra. A mesma coisa com Barack Obama, cuja mãe era branca.
Como vê isso na França de hoje?
Na França, penso que as coisas mudaram bastante para melhor. Quando era criança, não havia uma publicidade ou um cartaz qualquer no qual se viam pessoas negras. Isso não existia. Hoje, há muito. E não só na publicidade, que reflete também o que se passa na sociedade, mas na TV, no rádio. Isso mudou muito, antes eram todos brancos.
Você morou nove anos em Berlim, apreciava a “falta de esnobismo” na cidade, mesmo no mundo da arte. Como é a sua vida em Paris hoje?
Esnobe talvez seja uma palavra um pouco forte demais. Mas talvez lá seja mais simples. Aqui há isso de uma cultura francesa que teria sido “a maior”. Na Alemanha não há isso, e em Berlim menos ainda. Gosto muito dessa simplicidade berlinense, mas também não detesto a sofisticação de Paris. Gosto dos dois.
Adolescente, a vida real a deixava ansiosa, e a literatura teria permitido transformar sua profunda inadequação ao mundo em algo socialmente aceitável e até gratificante. Como foi isso?
Paradoxalmente, não acredito mais nisso, porque tive uma vida de família muito clássica, me casei, tive três filhos, adorei ser mãe, morávamos no campo, com cães, gatos, galinhas. E gostava muito desse lado muito prático da vida. Gostava de levar meus filhos na escola, brincar com eles. Não tinha medo do lado concreto da vida, ao contrário, busco isso ainda hoje. Gosto de fazer coisas com as mãos, cozinhar, costurar. Por isso que não posso de nenhuma forma me definir como uma intelectual. Sou alguém que vive normalmente e que escreve paralelamente. E passo muito mais tempo vivendo do que escrevendo. Ao mesmo tempo, enquanto vivo, escrevo um pouco
na minha cabeça.
Para você, esse tempo “escrevendo mentalmente” pode ser bem mais agradável do que a escrita propriamente dita?
É parecido. É um pouco o mesmo trabalho. Só que chega um momento em que o devaneio se torna tangível.
Você segue uma leitora insaciável?
Ah, sim, leio muito mais do que escrevo. Hoje estou relendo Philip K. Dick, também uma biografia de Joseph Roth, escritor alemão nascido em 1894. Ele morreu jovem, antes dos cinquenta anos. Seu romance mais célebre é Marcha de Radetzky. Gosto muito desse autor de língua alemã.
É otimista em relação à literatura?
Há outras formas e plataformas de leitura hoje. O que acho prodigioso com a internet é que descobri um número de autores e obras que não teria descoberto sem essa ferramenta, ou quem sabe teria, mas mais tarde e mais lentamente. Há sites dedicados à literatura que são extraordinários. Sou muito agradecida pelo fato de que isso existe, que possamos ter acesso a isso desde o vilarejo onde morava na Gironda, no interior da França. Há menos pessoas capazes de ler coisas mais complexas? É possível. Mas naturalmente não sou uma pessoa pessimista. O estado do mundo me atinge, me faz mal, provoca dor, mas não me deprime, porque não é o meu temperamento. Já o otimismo é um outro estado, está acima da alegria. Mas, em todo caso, não sou pessimista, não sei sê-lo.
CORREÇÃO > Atualizado em 11 de novembro de 2024: uma versão anterior desta matéria atribuiu a tradução de ‘A vingança é minha’, da editora Todavia, a Paulo Neves. A tradução é de Marília Scalzo.
Matéria publicada na edição impressa #87 nov em novembro de 2024. Com o título “Romancista da ambiguidade”
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