

Ficção, Literatura Negra, Trechos,
Fogo-cruzado no Harlem
Em As regras da trapaça, Colson Whitehead continua a retratar o frenesi de lutas, culturas e crimes no Harlem dos anos 70 que permeiam romance anterior do autor
20jan2025Vencedor do Pulitzer e do National Book Award, Colson Whitehead retoma em As regras da trapaça o contexto social retratado em Trapaça no Harlem. Ambientado em um dos berços históricos da cultura negra em Nova York, o livro publicado pela HarperCollins Brasil em tradução de Petê Rissatti apresenta os conflitos e transformações que marcaram o Harlem nos anos 70.
Tentando conseguir ingressos já esgotados do show do Jackson 5 para sua filha, o protagonista acaba por pedir ajuda a um ex-parceiro e retomar um passado que já havia decidido abandonar: o do crime. A partir daí, o furacão de disputas, crimes e mudanças sociais que integrava a conjuntura nova-iorquina da época se revela nas páginas do livro.

Pelas ruas do Harlem, se estabelecia uma espécie de fogo-cruzado. Em meio ao conflito entre o Exército de Libertação Negra e as forças do Estado, o protagonista e seu companheiro das antigas retornam ao universo das trapaças.
Trecho de ′As regras da trapaça’:
Green havia passado pela loja no outono de 1969 para se apresentar. Carney tinha clientes brancos — militares de carreira da vizinhança, universitários e jovens casais intrépidos em busca de aluguel barato e que não se intimidavam com a atual decrepitude do Harlem. No momento em que viu Green, soube que o jovem branco não era um deles. Estava no showroom, observando uma decoração de parede de Esme Currier, uma treliça de latão e aço sobreposta com uma série de crescentes esmaltados azuis e verdes. Examinou-a com uma haste dos óculos enfiada na boca, como se estivesse sobre o mármore frio de um museu.
— Eu adorei — disse Green, antes que Carney pudesse falar. — Posso levar para casa?
Ele usava um terno de linho branco e uma camisa amarela brilhante, os três primeiros botões abertos para revelar a pele pálida e sardenta e um pingente indiano turquesa. Green teve sorte de não ter apanhado, andando por ali daquele jeito. O homem não tinha noção.
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No escritório, compartilhou o verdadeiro motivo da visita: apresentar seus serviços como negociante. Harvey Moskowitz, antigo contato de Carney, era um amigo e o informara que Ray Carney era o homem com quem conversar se estivesse procurando fazer negócios no Harlem.
— Ele falou que você não é uma maçã podre — disse Green para ele. — E que você atendia a uma comunidade carente.
Comunidade carente era uma maneira divertida de dizer ladrões negros que eram recusados por receptadores brancos do centro da cidade. Ele perguntou a Green se Moskowitz havia explicado por que haviam parado de trabalhar juntos. —Ele falou de um incidente e que a culpa foi inteiramente dele. — Green avistou o cofre dos Hermann Bros. — Uau, que belezura.
A fraternidade secreta dos aficionados por segurança da Hermann Bros. Green ofereceu sua proposta. Tal como Moskowitz, era o responsável estadunidense por uma rede europeia. Qualquer coisa que fosse colocada em suas mãos sairia do país em setenta e duas horas. Era cuidadoso, dizia ele, e discreto. Ninguém tinha algo contra ele — criminoso, policial ou agente federal —, e ele pretendia manter as coisas desse jeito.
— Tudo isso para dizer que — concluiu Green — se você precisar de um local um dia, sou eu quem você deve procurar. — Ele apontou o polegar na direção do showroom. — Agora, sobre aquela peça de Currier… é realmente excelente.
Ele folheou algumas notas de dinheiro.
Carney gostava dele, apesar de sua associação com Moskowitz, que o apunhalara pelas costas durante o último encontro entre os dois. Ainda assim: Carney estava aposentado e, às vezes, passava horas inteiras sem que tivesse um pensamento de bandidagem.
Ele guardou o cartão do homem.
Não sabia as taxas de Green, mas essa era a negociação de Munson e o policial tinha horário marcado, então Carney não se preocuparia. Eram quase sete e meia. Se aconteceria ou não naquela noite, dependia de como rolasse com Green. Talvez tivesse à mão essa quantidade de dinheiro, talvez não. O detetive poderia ter que esperar até o dia seguinte, a menos que Carney conseguisse algum dinheiro naquela noite como adiantamento. Havia virado mais que um intermediário. Se continuasse sendo uma troca por ingressos para shows, Carney poderia dizer a si mesmo que ainda estava aposentado. Se envolver mais…
— Apartamento 19J — disse o porteiro. — Pode subir.
O hall de entrada se abriu para uma espaçosa e moderna sala de estar com vista para norte e oeste. Um espaço para conversa dominava o centro, as banquetas fundas de vinil verde cercavam uma mesa de centro baixa de nogueira escura. As outras peças — o conjunto da sala de jantar, a espreguiçadeira, as luminárias de arco duplo — eram amálgamas de cromo, couro, pele e plástico. Liquidação de encerramento da Barbarella. Houve uma época, no outono de 1967, em que Carney tentara pegar algumas daquelas coisas europeias frias para a loja: e nada. Seus clientes olhavam para ele como se estivesse praticando bruxaria. Apesar do preço mais baixo, a escultura de parede que Green comprara de Carney pendia como um complemento perfeito.
— Que bom que você veio — cumprimentou Green.
Seu sorriso era treinado e sincero ao mesmo tempo. Ele estava vestido com uma jaqueta branca no estilo indiano e uma camisa com estampa de caxemira roxa e rosa. Improvisos psicodélicos, com cítara pesada, fluíam do aparelho de som.
Carney conferiu a vista enquanto Green lhe servia um refrigerante. Alguns meses antes, o apartamento tinha uma visãodesimpedida de Randalls Island e Astoria, mas novos arranha- céus residenciais foram erguidos em todas as direções, com luzes de construção acesas em andares esqueléticos e incompletos. Uma corrida em câmera lenta.
— Queens, Bronx — explicou Green. — Sabe o que não dá para ver? O Brooklyn. Estamos de costas. — Ele se recompôs. — Vamos ver o que você tem para mim.
Eles se acomodaram à mesa da sala de jantar. Quando Green deu uma olhada dentro da pasta, disse:
— Onde estão meus modos? — E puxou um grande tapete de feltro preto do aparador cromado. — Posso?
Ele dispôs as peças ali com cuidado religioso, e luvas se materializaram em suas mãos.
Carney voltou à janela para deixar o homem trabalhar. Tinha os itens catalogados na cabeça, nada desapareceria enquanto ele estivesse de costas. Os arranha-céus — era como se estivessem empilhando andares para escapar da loucura da rua.
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