Literatura Negra,
Tempestade de verão
Romance de estreia do inglês Caleb Azumah Nelson é promissor, mas naufraga em história de amor adocicada
01nov2024Romance de estreia do inglês Caleb Azumah Nelson, Mar aberto é construído em torno, sobretudo, das intenções de um jovem fotógrafo apaixonado por uma dançarina. Com uma prosa envolvente, marcada pelas ruminações do protagonista, Nelson ambienta os momentos iniciais desse amor com floreios. Em sua história, o mínimo toque causa frisson e um olhar enviesado, furor.
Tratando-se de um romance adulto, com um protagonista já saído da puberdade, a inocência evocada por Nelson pode soar expressionista à medida que a relação não é consumada. Isso na primeira metade do romance, antes de chegar à paixão lancinante dos jovens.
O autor, então, desconstrói o rapaz, frisando suas angústias e problemáticas, para jogar luz no processo de amadurecimento. Mas, diferente de um romance de formação, há uma tensão que sobressai: a provável depressão que o jovem enfrenta e guarda para si, fatiando em camadas a dor do protagonista e dando combustível para a ansiedade.
No texto, essa ansiedade permeia a prosa e seus movimentos. Nesse processo de desnudar o protagonista com muita parcimônia, acompanhar tanta tensão cerebral fica custoso para o leitor. Esse amor errante e desmedido soa anacrônico, como se os jovens de hoje se demorassem excessivamente no processo declaratório, conferindo ao encontro muito açúcar e uma pitada de puritanismo — como quando o narrador dá ênfase aos toques inocentes que dirigiu à sua “donzela”.
Episódios de violência trazem ecos de um mundo rachado pelo avanço da extrema direita
O romance, que se passa nos anos de 2017 e 2018, demora a engatar. A princípio, o desejo do fotógrafo pela dançarina é justificadamente condenável, haja vista a amizade do personagem com o então namorado da moça. E essa questão volta como algo perturbador, mesmo quando a relação já está consumada, como pontua Nelson:
Como se livrar do desejo? Dar voz a ele é semear uma semente, sabendo que de alguma forma, de alguma maneira, ela vai crescer. É admitir e se submeter a algo que está fora dos limites da sua compreensão.
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A dançarina, em um vaivém entre Londres e Dublin, aprofunda-se na relação e constrói uma escada de status para o rapaz. Ele sobe desengonçado, questionando-se sobre ceder às suas pulsões. De conhecido para melhor amigo, confidente e amante, a relação de amor dos dois se solidifica na medida que o jovem aprende a domar suas ruminações e desaguar em emoções. Mas logo ele se fecha em sua concha. Nessas tomadas introspectivas, fica claro como Nelson quis moldar a cabeça masculina: sempre na defensiva.
Ao narrar a odisseia sentimental do protagonista em segunda pessoa, fica clara a dificuldade do homem em assumir e transparecer seus sentimentos mais profundos. Seus demônios, igualmente, permanecem em repouso, guardando reflexões sobre violência, racismo, depressão e episódios traumáticos que modulam a vivência de negritude do protagonista.
Para justificar a postura combativa e as oscilações de humor que abatem o fotógrafo, à mercê da própria insegurança, Nelson recorre a um ensinamento de Teju Cole, que “descreve como a morte chega de forma absurda, em meio à banalidade”. Em Mar aberto, lemos:
Cole fala de observar um homem que sabe que está morrendo, e que está de boa na dele, de boa, até o momento que foge, rumo à liberdade, porque de fato a liberdade é a distância entre o caçador e a presa. Cole fala de aturdimento. De estar mergulhado na crise alheia, no horror alheio. Mas ele não sabe? Claro que sabe. Mas o que se deve fazer com as coisas sobre as quais não quer saber?
O racismo, essa mácula maldita da sociedade, persegue o protagonista de Mar aberto enquanto ele cruza a cidade de Londres. Em um episódio traumático, depois de sair de um barbeiro, Nelson mostra como a repressão policial contra jovens negros estilhaça perspectivas e aterra imagens caras para o protagonista. Ao longo do romance, por meio da escrita, ele busca redenção pela literatura e fotografia:
Não espere a água subir. A água não vai salvar você. Você olha para baixo e vê um reflexo trêmulo na ondulação das profundezas sombrias. Deus tem muitas faces. Inúmeras vozes. Uma canção na escuridão. Tenha fé. Chupe a mordida da cobra, cuspa o veneno aos seus pés. Engolir é suprimir. Ser você é ter que pedir desculpas e muitas vezes esse pedido de desculpas vem na forma de repressão, e essa repressão é injustificada. Bote tudo para fora. Não espere a água subir.
Germes do racismo
Entre metáforas sobre superação e menções a Kierkegaard, James Baldwin e Zadie Smith, o autor ostenta pedigree cultural acerca de pintores, cineastas, músicos e compositores negros. Nelson rasga o verbo para expurgar os germes do racismo, recorrendo a traumas urbanos e pequenas histórias de jovens marginalizados e condenados em decorrência da própria cor. Em uma passagem visceral, ele lembra a escritora e ativista Saidiya Hartman.
Saidiya Hartman descreve a jornada das pessoas negras, de escravizados a homens e mulheres, e como esse novo status era um tipo de liberdade, mesmo que apenas nominal; que uma nova subordinação dos emancipados era natural diante das estruturas de poder nas quais essa liberdade funcionava e continuava a funcionar, retratando o corpo negro como um corpo de espécie, encorajando uma negritude que é definida como abjeta, ameaçadora, servil, perigosa, dependente, irracional e infecciosa […].
O trauma é digno de afogamento nesse breve romance. O mar aberto se agita e as consequências do maremoto balançam o protagonista, às voltas com seus botões e metáforas aquáticas para tentar explicar ao leitor suas questões mais profundas.
Ao longo da história, os episódios de violência trazem ecos de um mundo rachado pelo avanço da extrema direita e o descrédito das esquerdas que se digladiam entre si. Nelson entende bem o peso do racismo cotidiano, toca-lhe a diáspora transatlântica quando o autor narra o périplo dos antepassados do protagonista, que vieram de Gana, assim como os seus.
Por onde trafega, o fotógrafo faz uma radiografia social, e entre reflexões, brota a ficção. A poesia caminha junto com a revolta, e entre elas, a vertigem de existir à deriva.
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