Literatura infantojuvenil, Música,

Patti Smith precisa de ajuda

Livro de artista uruguaia se inspira no estupendo álbum de estreia da cantora, mas traz piadas cifradas para as crianças

01out2021 | Edição #50

Já disse isso antes nesta mesma revista, mas vale repetir: nas resenhas de livros infantis, não é raro que o bordão “é para toda a família” seja usado como elogio. E tem sido usado a torto e a direito, sem distinção. Ele nem sempre descreve uma característica — no geral é só uma fórmula desgastada que serve como suposto indicativo do valor de um livro, que aumentaria na mesma proporção do número de gerações que consegue emocionar. É uma inversão sem sentido: livros infantis são para as crianças, por mais que o diálogo ou a leitura guiada ou conjunta ajudem a colocar o conteúdo em perspectiva e a estreitar laços de afeto. Você pode até gostar, mas, em última instância, não é você quem tem que gostar.

Muita gente vai dizer, e talvez até com propriedade, que Os cavalos de Patti, escrito e ilustrado pela artista uruguaia Pato Segovia, é para toda a família. Ou seja, salve-se quem puder. Se alguns brinquedos só funcionam com pilhas, Os cavalos de Patti só funciona com um adulto entusiasmado ao lado — um adulto com acesso ao Spotify, ou, o que parece bem plausível, a uma coleção de vinis.

O enredo faz referência ao estupendo álbum de estreia da estupenda Patti Smith, Horses, de 1975. É bem simples: Patti quer ajuda para encontrar seus cavalos, que não vê há bastante tempo. Ela sai à sua procura e topa com vários músicos, e então lhes pergunta se eles viram seus cavalos. Eles não viram, viram apenas os animais que podem ser associados a eles por conta de algum álbum, letra ou episódio duvidoso.

Lá estão Joni Mitchell e os pôneis de “The Circle Game”, Tom Waits sendo associado a seus Rain Dogs e Ozzy Osbourne comendo um morcego (explique essa para o Juninho). Iggy Pop, transformado em cachorro, logo se junta a Patti na busca pelos cavalos. Você sabe: é uma referência a “I Wanna Be Your Dog”, música que ele cantava quando estava à frente dos Stooges (também quero ver você explicar essa se a questão surgir). Bob Dylan enxerga a resposta para a pergunta de Patti soprando ao vento, e Bruce Springsteen oferece uma música (“Because the Night”) e uma carona.

Construções difíceis

A linguagem da tradução poderia ser um tanto mais simpática ao ouvido infantil, que, aliás, está claramente em jogo aqui. Construções como “suponho não ter visto uns cavalos selvagens?” não são a melhor pedida — faria mais sentido adaptar a linguagem coloquial do inglês para o português. Outros termos são inescapáveis e simplesmente não ajudam o pobre tradutor, que não tem outra alternativa a não ser fazer o Pôncio Pilatos: Hot Rats, álbum de Frank Zappa, virou “quentes ratazanas”.

Tem jeitos melhores de familiarizar uma criança com bons artistas e com a história do rock, de transmitir o que aqui também é afeto e legado

As ilustrações de Pato Segovia não são, é verdade, das mais atraentes. O objetivo é fazer associações, embora elas dependam, de novo, de um adulto apontando o Elton John e o Keith Richards e aí explicando o sentido de cada sacada, talvez indo e voltando do toca-discos. Divertido, não? (Não, pobre criança.) Pense nesse livro da seguinte forma: você levou uma amiga que estava meio jururu a um show de stand-up, mas, como o comediante faz umas piadas bem específicas, você tem que se inclinar até o ouvido dela para explicar uma por uma. É isso.

Visão dos adultos

Se com as crianças a chance de sucesso tende a ser bem baixa, vamos ver com os mais velhos. Minha mãe nasceu faz umas boas décadas e, como ela mesma diz, “curtiu aquela época”. (Qual época? Difícil dizer, ela se perdeu a caminho de Woodstock. Também me obrigou a ouvir The Velvet Underground desde os meus dois ou três anos e nunca tolerou ofensas a Lou Reed, sobretudo na hora das refeições.) Tinha tudo para dar certo. Mostrei Os cavalos de Patti para ela. Com uma economia de palavras apropriada para quem aprendeu a depreciar o cara que acusou os Beatles de serem “um lixo”, disse que achou “uma pobreza”. E ela tem razão — não apesar de ser um livro infantil, mas sobretudo levando em conta que é um livro infantil.

Não dá para abraçar tudo aquilo que contém o que a gente ama só porque sim. Tem jeitos melhores de mostrar o que é importante para você do que com piadinhas cifradas — de familiarizar uma criança com bons artistas e com a história do rock, de transmitir o que aqui também é afeto e legado. Coloque a música, dancem na sala, ensine a criança a cantarolar “Heroin”. É isso que fica. Valeu, mãe. 

Este texto foi feito com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Camila von Holdefer

Crítica literária, é colaboradora do IMS e da Folha de S.Paulo.

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.