Literatura,

Quem foi Rebecca?

Ao escrever a releitura do clássico gótico de Daphne du Maurier, escritora portuguesa ousa explicar quem era essa mulher inesquecível

21mar2022 | Edição #56

Tanto neste O verão selvagem dos teus olhos quanto no premiado Karen, Ana Teresa Pereira recria, inspirada em clássicos da literatura, cenários ingleses por onde circulam personagens também ingleses. E o faz em bom português. A ideia de pastiche, que aqui parece inescapável, contrasta com o estilo contido e elegante da autora — e com seu evidente fascínio por aquele universo. Se há ironia nos livros de Ana Teresa Pereira, ela é tênue e descontínua. É isso que os torna tão fantásticos e singulares.


O verão selvagem dos teus olhos, de Ana Teresa Pereira, faz uma releitura do clássico romance gótico Rebecca 

Em Karen, as referências são difusas — um repertório de clichês que vai das charnecas aos bules de chá. Em O verão selvagem dos teus olhos, no entanto, a intertextualidade é mais direta. É difícil compreender o livro sem conhecer Rebecca, o romance gótico de Daphne du Maurier publicado em 1938. As adaptações de Rebecca ganharam a ópera, o rádio, o teatro e a televisão, mas foi com o cinema que alcançaram popularidade. Dois anos depois da publicação do livro, em 1940, Alfred Hitchcock lançava a obra-prima que conquistou um Oscar de melhor filme, Rebecca: a mulher inesquecível. A versão de Ben Wheatley para a Netflix, disponibilizada em 2020, é bem inferior, mas cumpre a função de apresentar as linhas gerais do enredo. Há diferenças entre eles, mas são de menor importância.

Um adendo importante antes de falar da trama: Rebecca seria plágio de A sucessora, romance da escritora brasileira Carolina Nabuco, de 1934. Além das semelhanças desconcertantes, há o fato de que a própria autora traduziu o livro para o inglês na esperança de encontrar uma editora que o publicasse. É possível que Daphne du Maurier tenha lido o manuscrito.

Rebecca conta a história de uma jovem de origem modesta, cujo nome nunca é revelado, que se casa com o riquíssimo viúvo Maxim de Winter. A primeira mulher de Maxim, ou Max, era a extraordinária Rebecca — aos olhos de muitos, a verdadeira e insubstituível Mrs. De Winter. Há dois momentos bem demarcados no livro de Du Maurier. Assim que os recém-casados chegam a Manderley, a propriedade de Max na Cornualha, o vazio deixado por Rebecca se revela abismal. É sobretudo a governanta, Mrs. Danvers, quem compara a jovem sem nome à bela, desenvolta e sofisticada Rebecca. Todas as expectativas em torno da jovem passam a ser, graças ao padrão estabelecido pela falecida Mrs. De Winter, inatingíveis; ela nunca será uma anfitriã, amazona ou velejadora tão competente. E, o que é pior, tudo indica que Max não só ainda ama a primeira mulher como nunca voltará a amar alguém da mesma maneira.

Mas há uma reviravolta — estamos no terreno da literatura gótica, não esqueça. A jovem fica sabendo que Rebecca era na verdade cruel e manipuladora, fingindo ser a esposa perfeita a fim de manter as aparências. Durante o tempo em que estiveram casados, Max sentia por Rebecca um ódio desmedido. No entanto, mesmo depois de passar de figura idealizada a abominada, Rebecca continua a assombrar a vida da jovem.

Meio-termo

Ana Teresa Pereira, por sua vez, faz uma manobra arriscada: não só ousa perguntar quem foi Rebecca como ousa formular uma resposta. O verão selvagem dos teus olhos alterna capítulos em terceira e em primeira pessoa. Uma das linhas narrativas revela quem era Rebecca antes de conhecer Max — uma garota cheia de vida que amava cachorros e cavalos, jazz e teatro, jardins e barcos. A outra mostra Rebecca já transformada em um fantasma que assombra Manderley, intrigada com a jovem sem nome que agora ocupa seu lugar. Sem forçar os limites do romance de Daphne du Maurier, ou seja, sem apelar para a saída fácil do pastiche, Ana Teresa Pereira recupera a humanidade de uma personagem clássica que teve direito a duas aparições: uma como anjo, outra como demônio. Mas é necessário haver um meio-termo.

Sem apelar para a saída fácil do pastiche, a autora recupera a humanidade de uma personagem clássica

Além de se mostrar excelente na criação de uma atmosfera e no encadeamento narrativo, Ana Teresa Pereira exibe uma noção impecável de proporções. Se modernizasse demais a narrativa, algo importante se perderia — talvez, como ela parece ter intuído, algo daquela atmosfera ao mesmo tempo fantasmagórica e mágica de Manderley, com seus bosques sombrios e prados ensolarados. Se a deixasse como está, ainda discutiríamos um romance que trata um feminicídio como um ato heroico.

O verão selvagem dos teus olhos finge apresentar a mesma trama do romance de Du Maurier pela perspectiva de Rebecca, mas (felizmente) opera uma releitura. No romance da britânica, Rebecca coleciona amantes devido ao que se pode interpretar como uma falha de caráter. No de Pereira, a crise conjugal é culpa do marido. Logo após o casamento, Rebecca conta a Max sobre os “anos que passara em Londres, a música e o teatro, as galerias, os namorados”. Ela não tem intenção de provocá-lo ou feri-lo; só deseja dividir as experiências que lhe parecem significativas. É Max quem se volta contra ela, sentindo-se traído por um passado mundano do qual não desconfiava e no qual não sabe como encaixar a imagem que tem de uma esposa. Na reação de Max, Rebecca capta “uma mistura de ódio e desprezo” que a “transformava por dentro”, como se ela “tivesse de viver à altura daquele olhar” de repulsa. Max a chama de “monstro” e se afasta. Dali em diante, o casamento é mera encenação. Rebecca, uma excelente atriz.

A distância entre ser e representar é um tema caro a Pereira. Há, em seus dois romances, mais do que uma simples sugestão de que às mulheres cabe, ou cabia, um papel único. E, se Rebecca enfim se libertou do papel a que estava confinada ao lado de Max, quem é ela? A resposta aponta mais uma vez para quem ela foi, mas também para quem poderia ter sido.

Tanto em Karen quanto em O verão selvagem dos teus olhos uma personagem se revela na relação ou no contraste que estabelece com outra. Aqui, a presença corpórea, porém discreta, da jovem não é páreo para a magnitude do fantasma de Rebecca. Ao menos na narrativa de Pereira, sabemos que essa disparidade é intencional; Rebecca menciona mais de uma vez a antítese entre “um ser que não existe e um que se recusa a deixar de existir”. A despeito de certa tensão, não chega a haver, da perspectiva de Rebecca, um antagonismo verdadeiro entre as duas.

A autora reforça, sobretudo por contraste, a singeleza e a ingenuidade da jovem. Ao contrário de Rebecca, a nova Mrs. De Winter se encaixa no papel de mulher dócil e delicada — ou, para homens como Max, no de esposa. Rebecca nunca o ocupou plenamente e sabe que nem poderia ocupá-lo. Há um simbolismo aqui, é claro, menos depreciativo com a jovem — que nem sequer tem um nome — do que generoso com Rebecca, aviltada desde 1938. Ela finalmente pôde existir em paz.

Quem escreveu esse texto

Camila von Holdefer

Crítica literária, é colaboradora do IMS e da Folha de S.Paulo.

Matéria publicada na edição impressa #56 em fevereiro de 2022.